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Deslocar o Universal

Dos Direitos Humanos aos Direitos dos Povos

ensaio de Severino Ngoenha e Filomeno Lopes
4 de outubro de 2025

    O trágico-cómico da cena contemporânea

    Vivemos num mundo cuja encenação política parece uma comédia, mas que, examinada com cuidado, revela-se um drama trágico. Da política trumpista às guerras na Ucrânia, das operações israelitas na Palestina ao colapso do Sudão, dos drones americanos sobre a Venezuela à insurgência no Sahel, o espetáculo global oscila entre o grotesco e o catastrófico. A ironia é que tudo isto se faz em nome dos direitos humanos, proclamados como universais mas sistematicamente violados. Aquilo que parecia ser o ápice moral da modernidade – a Carta de 1948 – tornou-se instrumento de intervenção seletiva, legitimando guerras, sanções e bloqueios, ao mesmo tempo em que falha em garantir habitação, educação e liberdade em países ricos e pobres. Estamos, portanto, diante de um paradoxo: uma promessa universal transformada em retórica estratégica.

    Ninguém sério sustenta hoje a “não-humanidade” do Outro, derrubada pelas revoluções modernas e consolidada na Declaração Universal de 1948 (“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, art. 1).
    O reconhecimento antropológico venceu; o reconhecimento dos povos permanece bloqueado. Enquanto a retórica dos “direitos humanos” promete proteção, a realidade social nega moradia, educação e palavra; pior, muitas vezes o discurso humanitário autoriza intervenções seletivas e hierarquias de valor. O impasse não é já provar que o Outro é humano; é admitir que os povos existem como povos, com linguagens, cosmologias e formas de vida próprias – e, por isso, são sujeitos políticos e não meros destinatários de normas. 

    Nessa contradição, a ONU é espelho e engrenagem: o Conselho de Segurança mantém uma hierarquia de veto entre cinco Estados permanentes (P5), cujo poder bloqueia decisões substanciais (Carta da ONU, art. 27). Não por acaso, esse núcleo coincide com os principais exportadores de armamento, condição que transforma a paz em “paz bélica continuada”. O arranjo institucional que promete “segurança coletiva” opera, de facto, pela exceção dos fortes – isto é, pela possibilidade de impedir que a igualdade jurídica se traduza em igualdade efetiva entre povos. 

    A genealogia mínima: o universal plural antes do universal monológico

    A gramática onusiana supõe que a linguagem dos direitos nasceu no Ocidente moderno. Historicamente, porém, há cosmologias e normatividades não ocidentais que já formalizavam deveres de não violência, proteção do vulnerável e pluralidade social. A Carta de Manden/Kurukan Fuga (século XIII), atribuída ao império do Mali, enuncia – em tradição oral – princípios de paz na diversidade, inviolabilidade da pessoa, abolição da escravidão por razzia, liberdade de expressão e comércio, segurança alimentar e educação. Não se trata de “provar” uma origem africana dos direitos, mas de romper a ideia de que a moralidade universal só conhece uma fonte. 

    O ponto filosófico é claro: o universal não nasce de um único mundo, mas de traduções entre mundos. Aqui a proposta de Dipesh Chakrabarty é decisiva: “provincializar a Europa” não significa expulsá-la do centro, mas relativizar o seu universal para que seja traduzível por outras histórias. É reconhecer que as categorias europeias são, ao mesmo tempo, “indispensáveis e inadequadas”, e que a modernidade só se torna inteligível quando outras experiências entram como co-autoras do sentido. 

    V. Y. Mudimbe mostrou como a “África” do saber colonial foi um dispositivo de classificação; descolonizar não é inverter o estigma, mas inventar categorias desde dentro. K. A. Appiah reabilitou um cosmopolitismo que não apaga pertenças; Kwasi Wiredu pensou universais enraizados em práticas de consenso e racionalidade não adversarial; Amílcar Cabral ensinou que cultura é “matriz de libertação”.

    O limite do humanismo individualista: Levinas como caso-limite

    A ética do rosto de Emmanuel Levinas elevou o Outro à dignidade máxima do encontro. Contudo, o seu Outro permanece indivíduo; os povos não ganham estatuto de sujeito. Ao pensar o horizonte histórico, Europa é reconduzida à tripla fonte “Jerusalém-Atenas-Roma”, como se a ordenação legítima do mundo só pudesse resultar dessa matriz. A força ética do apelo levinasiano convive, assim, com um eurocentrismo residual, incapaz de admitir que civilizações extraeuropeias possam organizar o comum com igual legitimidade. Isso ajuda a compreender o paradoxo actual: depois da Shoah, do colonialismo e das guerras industriais, o Ocidente continua a propor-se como única gramática do universal, mesmo reconhecendo o seu próprio desastre. 

    O impasse onusiano: hierarquia de veto e economia de guerra

    Quando quem mais vende armas decide, com poder de veto, o que conta como paz, o sistema mundial passa a normalizar a exceção. É o que o desenho institucional da ONU cristaliza: decisões substantivas dependem da concordância dos P5; uma só objeção de um permanente bloqueia sanções, missões, nomeações e respostas a crises. Na prática, não temos uma assembleia de povos, mas uma oligarquia de potências. É por isso que, embora indivíduos “ascendam” (Obama, CEOs indianos no Vale do Silício), os povos permanecem sem voz. 

    A gramática africana dos direitos: do indivíduo ao povo

    A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (1981) é a inflexão mais consistente desse deslocamento. Os arts. 19-24 formulam: igualdade entre povos; direito à existência e autodeterminação; soberania sobre recursos naturais; direito ao desenvolvimento; paz e segurança; ambiente satisfatório. Não é “apêndice cultural” da UDHR, mas ontologia política alternativa que reconhece os povos como sujeitos co-originais do direito. 

    A implicação filosófica é dupla:

    1. a pessoa continua inviolável, mas a pessoa existe em mundos (língua, rito, memória, terra), e esses mundos têm direito a persistir;
    2. povos não são “Estados” nem “nações” modernas por cópia, mas formas de vida que podem ou não querer o Estado como o imaginámos.

    O antropoceno como crítica de civilização

    A crise ecológica não é o “homem em geral” contra a Terra; é a expansão planetária de um tipo histórico de homem – extrativista, competitivo, centrado no crescimento ilimitado – cuja aceleração desde a Revolução Industrial criou forças geológicas sociais. A “Grande Aceleração” mostra séries exponenciais (energia fóssil, produção, consumo, emissões) que não são neutras culturalmente; inscrevem um ethos civilizacional específico. Um mundo regido por competição e extração não pode fundar a paz que promete, nem a igualdade de povos que declara. 

    Ontopolítica dos povos: ser-no-mundo” e ser-com”

    Dizer direitos dos povos é deslocar o centro de gravidade do indivíduo abstrato para o habitar plural que dá consistência à vida humana. No léxico heideggeriano: o humano é ser-no-mundo e ser-com; isto é, modo de habitar e modo de co-habitar. Povos são formas de co-pertencer que articulam tempo, território, memória, língua, uso, cuidado, justiça. Que o universal se reconceba a partir dos povos significa três coisas:

    1. Pluralidade de fontes: não há uma só metafísica do comum. O universal só é legítimo como resultado de tradução recíproca entre mundos (aqui, novamente, a lição de “provincializar a Europa”). 
    2. Co-origem do sujeito: indivíduos e povos são co-sujeitos do direito. Nem coletivismo que apaga liberdades, nem individualismo que dissolve pertenças.
    3. Critério de justiça: justiça é capacidade de continuidade de formas de vida dignas (povos) sem dominação.

    Instituição mínima de um universal plural

    Para que isso não seja utopia de boa consciência, propõe-se uma instituição mínima:

    O que os direitos dos povos” não são

    São, sim, direitos de formas de vida para habitar o mundo segundo a sua axiologia – com limites internos (liberdades básicas de seus membros) e responsabilidade inter-povos.

    Epílogo – O cómico coral” (Bakhtin) como categoria política

    Mikhail Bakhtin descreveu, no carnavalesco, a suspensão de hierarquias e a emergência de vozes múltiplas; em Dostoiévski, chamou-lhe polifonia: “pluralidade de consciências, com direitos iguais, combinadas sem se fundirem”. Transposta à política do comum, a imagem sugere um universal sem monólogo: não a unanimidade coerciva, mas a concordância dissonante de povos que falam cada um na sua tonalidade e reconhecem, na tradução, o critério do justo. O cômico aqui não é frivolidade; é a alegria séria de descobrir que o mundo é maior do que a nossa gramática – e que a paz não é a interrupção das guerras, mas a arte de escutar. Chamemos a isso cómico coral: quando o universal já não é projeto de uma civilização sobre as outras, mas obra comum de muitos mundos.

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