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Escolas filosóficas africanas – v

Luís Kandjimbo |*

Como em qualquer outra parte do mundo, os acontecimentos sucedem-se, em África. Passadas duas décadas do novo século, temos a obrigação de fazer balanços que sejam constituídos por narrativas de histórias de outras narrativas históricas, mas não têm de estar necessariamente associadas a estatísticas. A este propósito, temos vindo a falar da história das filosofias nacionais. Mas podemos situar as suas coordenadas em história das diferentes histórias. Por exemplo, história das histórias das filosofias africanas, história das historiografias africanas, história das histórias das literaturas africanas,história das histórias das críticas literárias africanas. No entanto, para assinalar dois acontecimentos trágicos recentes, vou introduzir um atalho embraiador na nossa conversa. Trata-se de notícias de mortes de dois vultos do pensamento africano: Pius Ngandu Nkasahama (1946-2023) e Paulin Hountondji (1942-2024).

O crítico de Mbujimayi

Pius Ngandu Nkashama (1946-2023)era ficcionista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário, originário da República Democrática do Congo. Até à data da sua morte, vivia nos Estados Unidos da América. Foi professor de estudos franceses na Universidade Estadual do Louisiana, em Baton Rouge, onde residia desde 2000. Faleceu no dia 19 de Dezembro do ano passado, em consequência de uma insuficiência cardíaca. Nasceu em Mubjimayi, na província de Kassai-Oriental, onde realizou os estudos primários, tendo concluído o ensino secundário em Lubumbashi. Na Faculdade de Letras da Universidade Lovanium de Kinshasa obteve a licenciatura e o mestrado. Entre 1975 e 1981, obteve os títulos doutorais, conferidos no subsistema de ensino superior francês, pela Universidade de Estrasburgo. Desenvolveu actividade docente em cinco países diferentes, de três continentes: em Kinshasa e Lubumbashi (R.D.Congo,1970-1981), em Annaba (Argélia, 1982-1990), em Limoges, (França, 1991-1997), Sorbonne Nouvelle, Paris III (França, 1997-2000).

 
O filósofo de Porto Novo

Aproveito a oportunidade para ter Paulin Hountondji como guia dos anos em que emerge a Escola Filosófica de Kinshasa, seguindo os caminhos que percorre, durante os anos que viveu na R.D.Congo. Filho de pais beninenses, nasceu em Abidjan. Após os estudos primários e secundários em Cotonou, partiu para Paris, tendo realizado estudos propedêuticos no Liceu Henri IV, em Paris, de 1960 a 1963. Seguidamente, frequentou a prestigiada École Normale Supérieure (ENS).Durante a década de 60, esteve envolvido em várias inciativas levadas a cabo por Alioune Diop (1910-1980), o fundador da editora e livraria “Présence Africaine”. Mereceu a confiança do intelectual senegalês, quando em 1968 lhe foi atribuída a responsabilidade de dirigir a Comissão Inter-Africana de Filosofia, como mecanismo de incentivo dos estudantes Africanos, entre os quais se destacava o camaronês Marcien Towa (1931-2104). Para Hountondji esse foi um período de “ruptura teórica”althusseriana, relativamente aos unanimismos que criticava. Em 1966, concluiu o seu curso de agregação da ENS. Lançou mãos ao projecto de   doutoramento sobre Edmund Husserl (1859-1938), enquanto isso dedicou o resto do tempo à docência na Universidade de Besançon. Não publicou a sua tese sobre Husserl em virtude de ter decidido não participar numa “tradição teórica não-africana”. Tinha acabado de publicar o seu artigo sobre Anton Wilhelm Amo (1700-1754), o filósofo iluminista ganense do século XVIII.  O próprio Hountondji decidiu adoptar uma postura marginal, “trabalhar nas margens e, em vez de mergulhar de cabeça como um especialista restrito num autor ou numa corrente de pensamento, limpar o campo pacientemente, estabelecer a legitimidade e os contornos de um projecto intelectual que estava em outrora autenticamente africano e autenticamente filosófico.” Essa era a sua motivação, quando aceitou a oportunidade de se tornar professor na Universidade Universidade Lovaniumde Kinshasa e, mais tarde, na Universidade Nacional do Zaire, em Lubumbashi. Chegou a Kinshasa em 1970. Viveu intensamente o período em que aprendeu a gerir o silêncio. A capital congolesa irradiava a alegria e o sentido da boa vida. O estilo de vida incluía a frequência de festas e salões de dança dos bairros populares, animadas por orquestras da rumba congolesa. Estava-se na ressaca dos problemas que caracterizaram os primeiros anos da independência. A liberdade de imprensa sujeitava-se a controlos rigorosos. Tinha sido adoptada a “filosofia da autenticidade”, como doutrina oficial do Estado. No campus universitário, havia uma juventude ávida por aprender, mas, ao mesmo tempo contestatária.

No dizer de Hountondji, havia três universidades, a Universidade Católica de Louvain ou Universidade Lovanium, a Universidade Livre do Congo, com vínculos a igrejas protestantes, situada em Kisangani, e a Universidade do Congo, controlada pelo Estado. Mas em Junho de 1970, por ocasião do primeiro aniversário de uma manifestação de rua que custou a vida de muitos jovens, os estudantes da Lovanium organizaram uma marcha de memória em Kinshasa.Enfurecido, o presidente da República do Zaire Mobutu Sese Seko (1930-1997) deu ordens para imediata incorporação militar de todos os estudantes. As três universidades passaram a constituir uma única: a Universidade Nacional do Zaire com três pólos, Kinshasa, Kisangani e Lubumbashi.As três Faculdades de Letras foram concentradas em Lubumbashi.

 
Regresso ao Benin

Nessa altura, Hountondji diz ter aprendido “a ficar em silêncio”, escreveu no seu “Combate em busca do sentido”. Vigorava uma ditadura, acrescentava ele. Ao mesmo tempo, considerava que a ideologia da “autenticidade” parecia ter um parentesco cristalino com a etnofilosofia. Em1972, tomou a decisão de regressar ao Benin, logo depois do golpe de Estado militar. Acompanhando a situação política do seu país, Paulin Hountondji publicou um artigo no jornal “Daho-Express” com o título “O que é uma revolução?”. Manifestava aí a sua vontade de contribuirpara o grande debate nacional que estava a decorrer.Nesse mesmo ano, tornou-se o primeiro professor de filosofia da recém-criada Universidade de Daomé.

 
Três escolas filosóficas

Reportando-se a esse período, o filósofo e cientista político queniano, Ali Mazrui (1933-2014), no seu livro, “African Thought in Comparative Perspective” (Pensamento Africano. Uma Perspectiva Comparada), identificou a existência de, pelo menos, três escolas filosóficas em África: 1) a escola cultural, abrangendo a tradição oral e as suas lições; 2) a escola ideológica, abrangendo as ideias de activistas e líderes políticos; 3) a escola crítica, abrangendo filósofos académicos – geralmente baseados em universidades.

Em síntese, escreve Mazrui, a filosofia cultural é a filosofia dos sábios, geralmente, a sabedoria acumulada dos ancestrais. Por sua vez, a filosofia ideológica é a filosofia dos que possuem habilidades intelectuais e que as põem ao serviço de causas políticas ou morais específicas. Já a filosofia crítica é a  dos racionalistas académicos, aqueles que têm formação para operar com o método e com o conteúdo. Por vezes, colocam o método acima do conteúdo.

A escola cultural da filosofia africana poderia ser uma parte da filosofia sem filósofos, um corpo de pensamento filosófico acumulado ao longo de gerações. Os seus cultores reconheciam a necessidade de uma busca complexa de significado nas relações entre ideias, valores e princípios nas relações entre os seres humanos, e nas relações entre os seres humanos e a natureza. É uma escola filosófica que tem raízes nas tradições endógenas. Para Ali Mazrui, sendo preferível qualificá-la como cultural, é o que às vezes se designa por “etnofilosofia”. Além de ser colectivista, é transmitida principalmente através da tradição oral. Neste sentido, se no Ocidente a filosofia começa com o pensamento, a ciência empírica começa com o tacto. Mas em África não se faz nenhuma distinção clara entre pensamento e tacto. Por essa razão, o silogismo completo de um aspecto da filosofia cultural africana é o seguinte: “Sentimos, logo pensamos, logo existimos!”.

No que diz respeito à escola ideológica da filosofia, a sua caracterização é mais estritamente política. É uma comunidade de pensamento ideológico, “filho do colonialismo e das suas consequências”. É veiculado desproporcionalmente em línguas europeias. A prática da filosofia ideológica eleva novamente o indivíduo como fonte de ideias. Por conseguinte, a filosofia africana é abordada como se o seu núcleo seminal fossem as ideias de indivíduos como Amílcar Cabral e Gamal Abdel Nasser, em vez das filosofias de comunidades históricas. Assim, Mazrui admite que a fonte da filosofia ideológica seja mais estreita do que a fonte da filosofia cultural.Ilustra a ideia tomando como exemplo um pensador específico como Agostinho Neto, de Angola, cuja fonte de ideias é mais restrita do que a do povo Ovambo.

Relativamente à escola crítica da filosofia africana, Ali Mazrui caracteriza-a em obediência ao critério da sua consagração institucional. Realiza-se no contexto do estudo formal de filosofia nas universidades africanas, de acordo com o uso das línguas imperiais estrangeiras, nomeadamente, o inglês, francês,português, etc. A maioria dos grandes pensadores africanos modernos, tais comoEdward W. Blydene Paulin J. Hountondji, conduziam o seu discurso principal em línguas europeias. Mazrui ataca a “escravidão da linguagem” que em África tornou a filosofia irremediavelmente elitista.

 
Brazaville, uma estação

Estamos a caminho de Kinshasa. De acordo com o critério que vimos usando, há uma filosofia que se  revela igualmente tardia na África Central. Estou a apontar para o país cuja capital está situada na margem direita do rio Zaire. É a Escola Filosófica de Brazzaville.Presentemente, a sua mais proeminente figura tutelar é a do filósofo e político Charles Zacharie Bowao. No meu livro, “Filosofemas Africanos”, publicado em Maputo, dedico-lhe algumas linhas. Conto uma “petite histoire” acerca do acaso ocorrido. Encontrei-o em 2009, por ocasião do colóquio realizado durante o Festival Pan-africano de Música.A partir da década de 90 do século passado, Zacharie Bowao distinguiu-se com as iniciativas que levou a cabo, especialmente no domínio da criação do ciclo de estudos doutorais na Faculdade de Letras da Universidade Marien Ngouabi.

Parece justificar-se uma breve reflexão sobre as filosofias nacionais ou escolas filosóficas mais modestas do ponto de vista da sua visibilidade e produtividade das respectivas comunidades académicas. É um desafio que vale a pena ter na agenda.

Como vimos, no itinerário que nos leva à Escola de Kinshasa, inscrevem-se topónimos de sedes de outras escolas filosóficas. Já passámos por Yaoundé, Nairobi, Legon/Acra, Ibadan, Ifé, Benin, Porto Novo e Brazzaville.

 
Kinshasa e ensino da filosofia

Com as referências obtidas de confissões autobiográficas de Paulin Hountondji,podemos iniciar a nossa conversa sobre a Escola Filosófica de Kinshasa chamando a atenção dos leitores para as publicações periódicas produzidas por filósofos congoleses e outros que se dedicavam ao ensino e à investigação nos grandes centros de difusão da filosofia. A “Revue Philosophique de Kinshasa” (Revista Filosófica de Kinshasa) e a colecção “Recherches Philosophiques Africaines” (Investigações Filosóficas Africanas) são dois interessantes exemplares da pujante produção reflexiva. Apesar do contexto político, na época, eram elevados os níveis reputacionais das universidades e filósofos, especialmente, da  Faculdade de Filosofia e Religiões Africanas da Universidade Católica (Lovanium) do Congo. Esta unidade orgânica foi criada em Outubro de 1968, quando se definiu o ciclo completo de formação em Filosofia. Tal como acontecia em muitas universidades africanas, nada indicava que porém, era do ensino de filosofia africana. Os modelos dos programas eram basicamente ocidentais.

Ora, a fusão das universidades por força do dispositivo jurídico-normativo do presidente Mobutu de 1971, que deu lugar ao surgimento da Universidade Nacional do Zaire, era um prenúncio da desconfiança das autoridades políticas zairenses. Revela-se uma hostilidade contra a Filosofia, devido à sua presumível “capacidade subversiva”. Assim se explica que a Faculdade de Filosofia e Letras tivesse sido transferida para Lubumbashi, tendo sobrevivido a Faculdade de Letras e extinto o curso de Filosofia. O contrapeso tinha sido dado quando a Igreja Católica, do então Zaire, levantou a questão da formação teológica universitária dos seminaristas e dos sacerdotes. Reconhecia-se a necessidade de autonomização da Faculdade de Teologia, permitindo que se pensasse no lugar para acomodar a Faculdade de Filosofia. Assim, começou por ser criado o Departamento de Filosofia em Outubro de 1971, na Faculdade de Teologia do Campus de Kinshasa. Além disso, o Ministro da Educação tinha autorizado a constituição de um júri para avaliação dos candidatos aos cursos de Filosofia dos seminários maiores. Entretanto, em 1974, as autoridades políticas tomaram a decisão de criar as Faculdades de Teologia, Católica e Protestante, da Universidade Nacional do Zaire. Por essa razão, a Faculdade de Teologia Católica de Kinshasa foi transferida, passando a ser autónoma e afastada da capital.

 
Conclusão

Portanto, é a história das histórias das filosofias africanas que deve ser conhecida por aqueles que se interessam pelas dinâmicas do filosofar em África. A prosperidade filosófica da R.D.Congo é filha de lutas e adversidades vividas pelas comunidades académicas. Como veremos, a “Revista Filosófica de Kinshasa” integra a lista de publicações ao lado de outras que dão dignidade às diferentes escolas filosóficas, tais como “Second Order” da Universidade de Ifè, na Nigéria; “Consequence”do Conselho Interafricano de Filosofia; “Thoughtand Practice” da Unversidade de Nairobi;  “Quest”, da Universidade da Zâmbia; “Revue Senegalaisede Philosophie”, da Universidade Cheikh Anta Diop.


* Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 04 de Fevereiro de 2022, aqui republicado com a autorização do autor.


**Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 21/01/2024 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/escolas-filosoficas-africanas-v/

Marcos Carvalho Lopes

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