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ESSENCIALISMOS CONTEMPORÂNEOS DA BIBLIOTECA COLONIAL-II*

LUSO-TROPICALISMOS E «ILHAS CRIOULAS»

Luís Kandjimbo*

Na sequência das reflexões expendidas no texto anterior, o centro da nossa atenção na presente conversa reside nas respostas acerca  dos fundamentos biológicos da essência identitária dos povos colonizados.  Como vimos, o caso vertente diz respeito à presumível «capacidade biológica» e «glória do sangue» dos portugueses, enquanto elementos constitutivos dessa identidade. Por outro lado, levantou-se igualmente a necessidade de saber se os indivíduos que são membros das comunidades históricas dos territórios colonizados não existiriam sem as propriedades, necessárias ou acidentais, que emanam da definição da identidade luso-tropical ou crioula. Os subsídios da filosofia da biologia podem ser úteis para a interpretação do problema.

Outros anti-essencialismos

As posições contrárias à suposta bondade da teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1900-1987), a partir da década de 50 do século XX e ao longo da geração seguinte, disseminaram-se nos meios intelectuais e literários das então «províncias ultramarinas» de Portugal. Refutava-se a semântica do luso-tropicalismo em todas as colónias de Portugal. Com a mesma motivação do insigne ensaísta angolano, Mário Pinto de Andrade (1928-1990), de Cabo-Verde veio a contribuição do escritor e linguista, Baltasar Lopes (1907-1989) que, em 1956, proferiu seis palestras, comentando, «Casa Grande & Senzala», «Aventura e Rotina» e «Um Brasileiro em Terras Portuguesas», três livros de Gilberto Freyre, publicados em 1951 e 1953, respectivamente. As afirmações do sociólogo  brasileiro, que tinha visitado o arquipélago em 1951, suscitaram críticas por parte de Baltasar Lopes, ao ter considerado que no arquipélago predominava «a presença essencial da África matriz». Isto é, que o «cabo-verdiano era mais africano que português». Entretanto, em Cabo-Verde, discutia-se o dilema do regionalismo europeu e do regionalismo africano. Por outro lado, longe de tentações bio-essencialistas, desenvolviam-se debate sobre as identidades históricas e culturais através de fórmulas enunciativas, tais como angolanidade, cabo-verdianidade e moçambicanidade. Como exemplos podemos referir os textos do escritor e ensaísta cabo-verdiano, Manuel Duarte (1929-1982), «Caboverdianidade e africanidade», publicado em 1951, na revista portuguesa «Vértice», (Coimbra) e do ensaísta e poeta angolano, Costa Andrade (1936-2009), «L’Angolanité de Agostinho Neto et António Jacinto», publicado em 1962, na revista «Présence Africaine» (Paris). Estes são os contraexemplos que revelam o contrário dos bio-essencialismos. Não naturalizam a diferença entre os humanos, ignorando a dimensão histórica do diálogo intercivilizacional.

Naturalização da diferença

Na historiografia ocidental das ciências biológicas e das ciências sociais, regista-se um período em que, apesar das diferenças, a origem dos grupos humanos era comum. Carl von Lineu (1707-1778), no seu livro «System of Nature»[Sistema da Natureza], reconhecia a existência  de antepassados comuns da espécie humana: «Homo sapiens afer», «Homo sapiens americanus», «Homo sapiens asiaticus» e «Homo sapiens europaeus». Era uma classificação que não se aplicava aos animais. Mas passou a inspirar adjectivações preconceituosas, a respeito do tipo de personalidade dos grupos não-europeus. Começava assim a naturalização da diferença, encontrando os seus fundamentos nos clássicos da taxonomia científica ocidental, entre os quais Carl von Lineu com as categorias como género, família, ordem, George de Buffon (1707-1788), autor de «Variétes dans l’espéce humaine», [Variedades na Espécie Humana] e pioneiro no uso do termo «raça», aplicado às populações que viviam de acordo com as condições do seu meio natural, Gregor Mendel (1822-1884), com sua teoria da hereditariedade, lançando as bases da genética, Jean-Baptiste de Lamarck (1744-1829) com a filosofia da zoologia, Charles Darwin (1809-1882) com a teoria da evolução das espécies, e Francis Galton (1822-1911) com a teoria do eugenismo.

As propostas de classificação de Lineu, associadas à racialização da humanidade continuaram a ser úteis à Antropologia, enquanto ciência preocupada com a antropometria. Alargou o seu campo com o eugenismo cujos desenvolvimento se intensificou a partir da segunda metade do século XIX. Contou sempre com os seus ideólogos, responsáveis pela institucionalização do racialismo, enquanto essencialismo biológico. Destacavam-se os alemães, Ernst Haeckel (1834-1919), Fritz Lenz (1887-1976) e Eugen Fischer (1874-1967), o francês, Georges Vacher de Lapouge (1854-1936), e os norte-americanoe, Charles Davenport (1866-1944) e Madison Grant (1865-1937).

Carácter darwinista

Justifica-se a atenção aqui prestada aos contraexemplos e processos de refutação dos essencialismos biológicos de carácter darwinista. A eugenia que é uma das manifestações desse tipo de essencialismo apresenta semelhanças com o que, por vezes, se designa por «darwinismo social», uma versão da teoria da evolução de Darwin, resumindo-se na expressão «sobrevive o mais apto». De um modo geral, as qualidades do «mais apto» confundem-se com as características essenciais de ordem biológica. Assim,  o pensamento dos eugenistas e darwinistas sociais coexiste numa zona de intersecção constituída basicamente pelo problema da degeneração humana. O que se deve entender por essencialismo biológico?

Essencialismo biológico

Convoco aqui apenas dois filósofos com os quais podemos dialogar sobre esta matéria. O filósofo australiano, Michael Devitt, fornece algumas respostas com o seu livro, «Biological Essencialism» [Essencialismo Biológico]. De igual modo, o filósofo ganense, Kwame Anthony Appiah, em «Race, Culture, Identity: Misunderstood Connections» [Raça, Cultura, Identidade: Conexões Mal Compreendidas] e Color Conscious: The Political Morality of Race» [Consciência da Cor: Moralidade Política da Raça]. Entretanto, são aqui esboçadas breves linhas da argumentação de Michael Devitt, numa perspectiva que explora a filosofia da biologia e as correntes do essencialismo biológico. Partindo dos consensos estabelecidos, Michael Devitt elabora sínteses, formulando em seguida contra-argumentos. Critica o exército de seguidores do anacrónico «essencialismo aristotélico», cuja base assenta na ideia segundo a qual as espécies têm uma essência intrínseca subjacente. Contrariando o sentido do anacronismo, Michael Devitt incide a focagem sobre o consenso assente no carácter relacional da essência, querendo com isso dizer que para um organismo ser membro de uma determinada espécie, deve ter uma certa história. Em suma, Michael Devitt identifica dois tipos de essencialismo biológico: o essencialismo  histórico e o essencialismo individual. O essencialismo biológico histórico analisa-se em dois tipos: 1) «Totalmente histórico», segundo o qual as unidades de classificação biológica têm essências que não são intrínsecas, mas totalmente relacionais, particularmente propriedades históricas; 2) «Parcialmente histórico», segundo o qual as unidades de classificação biológica têm essências que são parcialmente propriedades históricas. O essencialismo «parcialmente intrínseco» é uma das doutrinas derivadas.

Por sua vez, o essencialismo biológico individual analisa-se igualmente em dois tipos: 1) «Parcialmente intrínseco», à luz do qual os indivíduos biológicos têm essências que são propriedades subjacentes parcialmente intrínsecas, podendo ser todas elas de ordem genética, por exemplo, as propriedades fenotípicas; 2) «Parcialmente histórico», segundo o qual os indivíduos biológicos têm essências que são propriedades parcialmente históricas.

Eugenismo

Na filosofia ocidental, remonta a Platão a formulação teórica do pensamento eugénico. «A República» de Platão contém uma secção em que são enunciadas tais ideias: (459d-460c). «Eugenismo» é uma palavra que tem a sua origem em «eugenia», significando «boas origens genéticas», neologismo  cunhado por  Francis Galton, o primo de Charles Darwin. Dedicou-se ao estudo da genética das características humanas e à possibilidade de melhorar as qualidades genéticas das populações, tendo publicado  dois livros dignos de leitura, «Hereditary Genius», (1869), [Génio Hereditário] e  «Inquiries into Human Faculty», (1883) [Investigação sobre as Faculdades Humanas]. Neste último livro, Galton enunciou a unidade lexemática «eugenia», do grego «eu» e «genics», no seguinte contexto frásico: «Desejamos que uma palavra breve exprima a ideia de uma ciência do melhoramento da linhagem que tenha em conta todas as influências que tendem, por mais remoto que seja, a dar às raças ou linhagens de sangue mais adequadas uma melhor chance de prevalecer rapidamente sobre os menos adequados, do que teriam de outra forma. A palavra eugenia expressaria suficientemente a ideia.» No plano lexicográfico existem vários eufemismos do seu significado. Por exemplo: «antropogenia», «biossociologia», «demografia qualitativa». Pode dizer-se que o luso-tropicalismo ou a crioulidade são versões do eugenismo, enquanto ideologia. A eugenia distingue-se do eugenismo, em virtude de este ser um movimento político que, assentando na naturalização da diferença, faz a apologia da melhoraria e avanço das qualidades da «raça». Estamos em presença de uma «utopia mortífera» moderna.

Eufemismo eugénico

Quando Gilberto Freyre elaborou a sua teoria, o Brasil vivia ainda as influências do eugenismo que tinha as suas causas no racismo estrutural, decorrente da história de escravização de Afrodescendentes, parte expressiva de uma população católica, rural, mestiça e analfabeta. Tal situação permite compreender que, após a abolição da escravização em 1888, o eugenismo estruturava a agenda da «higienização racial» das elites políticas. A palavra «eugenia» passou a integrar o  vocabulário brasileiro, em 1914, através de uma dissertação apresentada na Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro. Quatro anos depois viria a ser constituída a primeira sociedade científica eugénica brasileira. A presença de emigrantes de origem europeia aumentava e a pobreza dominava nas comunidades de Afrodescendentes, abatendo-se sobre elas uma progressiva obsessão pelo destino da inferioridade dos Afrodescendentes e a degeneração dos mestiços.

Nesse período a Escola do Recife, tinha marcado a história das ideias do Brasil, através da uma importante produção reflexiva nos domínios da Filosofia do Direito e da interpretação sociológica da cultura brasileira. Tinha sido publicado, em 1935, o Manifesto dos Intelectuais Brasileiros contra o Racismo, de que Gilberto Freyre era igualmente signatário. Entre os membros da sua geração, coube a Gilberto Freyre a renovação do culturalismo sociológico iniciado pelos intelectuais da geração anterior, nas décadas de 1930 e 1940. Surgia uma sociologia do multirracialismo ou «democracia racial», expressão de uma «civilização luso-tropical» de que o Brasil se podia orgulhar. O eugenismo assumia assim uma forma eufemística, na medida em que o milagre brasileiro consistia no facto de apenas os Africanos «eugenicamente» superiores terem sido protagonistas da união livre com os portugueses.

As obras de Gilberto Freyre e seus seguidores nos países de língua portuguesa carregam marcas das filosofias classificatórias do eugenismo. Não deixam de estar presentes os equívocos que o vão lançar às malhas do Estado Novo português com a apologia da vocação benigna da colonização. É nessa armadilha eufemística que tombou o poeta e ensaísta Mário António com o já referido livro de ensaios «Luanda.’Ilha Crioula’», 1968, obra que teve uma edição em língua francesa.

Conclusão

As orientações epistémicas dos subsídios filosóficos enunciados permitem concluir que a experiência vivida pelos mais lúcidos membros das elites intelectuais das chamadas «províncias ultramarinas portuguesas», inspirava já outras perspectivas perante às fórmulas de Gilbero Freyre, especialmente, quando glorifica o «mundo que o português criou». Como vimos, as posições contrárias à suposta bondade da teoria do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre (1900-1987), a partir da década de 50 do século XX e ao longo da geração seguinte, configuram a existência de uma produção ensaística publicada, durante o período da luta anti-colonial que, apesar de ser pouco abundante, deve merecer atenção. A leitura dos textos ensaísticos a que me refiro, revelam o vigor um contradiscurso de cariz ontológico. Não é casual que na década de 50 alguns jovens intelectuais tivessem sentido a necessidade de conceptualizar a sua identidade individual na relação com a comunidade relativamente à qual mantinham vínculos existenciais. Estou a referir-me aos diferentes  autores e respectivos textos poéticos, narrativos ensaísticos. Dos textos ensaísticos, já dei exemplos. São os casos de Manuel Duarte (1929-1982), «Caboverdianidade e africanidade», (1951); Costa Andrade (1936-2009),  «L’Angolanité de Agostinho Neto et António Jacinto», (1962). A perspectiva ontológica destes e outros autores será o tópico da nossa próxima conversa. Em jeito de remate, destaco o nome do escritor cabo-verdiano, Gabriel Mariano (1928-2002), que construiu um jogo de palavras com o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, ao propor uma reflexão com o seguinte título: «Do Funco ao Sobrado ou o Mundo que o Mulato Criou».


*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 24 de Setembro, aqui republicado com a autorização do autor.


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 24/09/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/essencialismos-contemporaneos-da-biblioteca-colonial-ii/

Marcos Carvalho Lopes

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