Luís Kandjimbo |
Quando, em 1949, o cabo-verdiano Filinto Elísio de Menezes (1924-1990) publicou o seu artigo “Apontamentos sobre a Poesia de Angola – precursores de uma poesia em formação”, na revista Cultura da Sociedade Cultural de Angola, os movimentos nativistas existentes nos territórios coloniais e nas diásporas, no contexto fim-de-século, evidenciavam um discurso político, cultural e literário muito consistente. É sobre as estratégias de enunciação dessas elites intelectuais nativistas que nos debruçaremos, na presente conversa. Não pretendendo ser exaustivo, a proposta limita-se a duas das cinco literaturas dos Países Africanos com Língua Oficial Portuguesa, a literatura angolana e a literatura cabo-verdiana.
Racionalidade discursiva
Partimos do pressuposto segundo o qual as fórmulas enunciativas como angolanidade, cabo-verdianidade e moçambicanidade são revelações de uma necessidade conceptual a que subjazem racionalidades discursivas dos membros das respectivas comunidades. São as chamadas categorias do ser. Donde a categorização ontológica que permite definir o campo semântico e os referentes em que se inscrevem os indivíduos e as propriedades que pertencem a essas comunidades históricas.
Portanto, o maior interesse em semelhante problematização reside na possibilidade de determinar as razões epistémicas das crenças em que se funda a racionalidade discursiva subjacente à categorização ontológica. Como se pode concluir, no caso do presente tópico, estamos em presença de razões e pistemicamente racionais. Aquelas categorias ontológicas exprimem uma vocação que as torna necessárias, pois, são dispositivos com os quais se pode organizar o conhecimento para referir as condições de existência e da identidade dos membros das comunidades a que dizem respeito.
Filhos do país e angolenses
Com a palestra radiodifundida e posteriormente publicada pela revista “Cultura” da Sociedade Cultural de Angola, Filinto Elísio de Menezes fazia prova de um incipiente conhecimento das realidades políticas e culturais de Angola, na primeira metade do século XX. Tratava-se de um período auspicioso em que as gerações literárias tinham surgido sob o signo dos ventos do liberalismo que sopravam em Portugal. Durante as duas primeiras décadas, factos assinaláveis tinham tido lugar. Por exemplo, a publicação da colectânea intitulada “Voz de Angola Clamando no Deserto” em 1901, uma obra colectiva de angolanos conscientes, intelectuais que perante a infâmia racista perpetrada por um artigo publicado no jornal “Gazeta de Loanda”, pretendem “vingar o indígena da nota de indolente in absoluto, e do labéu de destituído de senso moral…”. Foi nesse contexto fundado o jornal “O Angolense” em 1907. Seguidamente, consolidou-se o associativismo nativista, o desenvolvimento do jornalismo e da actividade literária. Expressões como “filhos do país”, “nativos” e “angolenses” traduziam bem essa necessidade de categorização ontológica.
Pode dizer-se que, de 1914 a 1917, registam-se acontecimentos de relevo. Durante a década seguinte, verifica-se uma deterioração da situação política. Sucedem-se acontecimentos que perturbam a ordem colonial. Desencadeia-se uma onda de prisões em Ndala Tando, Lucala e Benguela. Em1922, eclodiu a Revolta de Catete, ano em que Angola viria a ser abalada por decisões políticas tomadas pelo governo e que visavam liquidar o exercício dos direitos e liberdades, de acordo com o catálogo dos ideais republicanos pelos nativos. São silenciadas as figuras proeminentes das elites autóctones como António de Assis Júnior (1878-1960). Esmaga-se o associativismo nativista com a dissolução da “Liga Angolana”,a suspensão dos jornais “A Verdade” e “O Angolense”,nesse ano, e o desterro dos principais jornalistas e dirigentes associativos. O nativismo angolano ressurge, em 1929, com a publicação do romance “O Segredo da Morta” de António de Assis Júnior, em 14 de Julho de 1930 com a fundação da Liga Nacional Africana e em 1933 com a criação da “Revista Angola”, órgão da Liga Nacional Africana. Daí em diante, surgiram em Luanda outras associações, entre as quais a Associação dos Naturais de Angola, proprietária da revista literária “Mensagem” e a Sociedade Angolana de Cultura.
Portanto, Filinto Elísio de Menezes chegou a Luanda durante o período que se seguiu à crise do associativismo, coincidindo com a consagração de autores como Lourenço Mendes da Conceição (1896-1970)e Óscar Ribas (1909-2004),autores da última geração de intelectuais nativistas. Ao mesmo tempo, revelavam-se nomes das novas gerações literárias.
Pode-se concluir que o texto de Filinto Elísio de Menezes, com as suas críticas de pendor estético, dá conta do potencial dialéctico que comportavam as correntes da literatura angolana, a partir do impacto produzido sobre os leitores. Essa tensão será igualmente observável uma década mais tarde, por força da interpretação que Onésimo Silveira (1935-2021) elabora a respeito do fenómeno literário cabo-verdiano, tal como veremos mais adiante.
Crónica de Delfim de Faria
Em Cabo-Verde, a necessidade de categorização ontológica tem uma das suas principais manifestações na literatura. Prova disso é o “movimento literário modernista” como lhe chamou o ensaísta cabo-verdiano Jaime Figueiredo (1905-1974). Ilustram-no a publicação do livro de poemas “Arquipélago” (1935) de Jorge Barbosa (1902-1971) e da revista “Claridade” (1936), que surge em Mindelo, capital da Ilha de São Vicente.
A enunciação formal dessa categoria da identidade cabo-verdiana ocorreu em 1934. O testemunho é de Delfim de Faria (1911-1994), Bacharel em Direito pela Universidade do Rio de Janeiro, um cabo-verdiano nascido na Ilha da Brava, na época residente no Brasil, que publicou uma crónica, glosando entrevistas com os membros do grupo literário “Claridade”, realizadas em Mindelo. O mais solicitado dos entrevistados é Baltasar Lopes (1907-1989).
Delfim de Faria confessa ter percorrido todas as ilhas do arquipélago e mantido contacto com a classe intelectual de São Vicente, “especialmente com o poeta José Lopes (1872-1962), com o Dr. Marino Barbosa (1905-1981), e com o ‘Grupo Claridade’, que é constituído da fina flor da inteligência cabo-verdiana”. Destaca os nomes de Baltasar Lopes da Silva, Jaime Figueiredo, Manuel Velosa (1901-1956) e Manuel Lopes (1907-2005).
Os temas da conversa gravitaram em torno de tópicos de diferentes domínios do saber, tais como Sociologia, História, Filosofia e Literatura. Delfim de Faria quis saber acerca do que pensavam os seus interlocutores sobre as evidentes afinidades entre Cabo-Verde e o Brasil. A resposta de um dos membros do grupo apontou, entre outros, os seguintes aspectos: 1) “o paralelismo de formação étnica”; 2) a assimilação e interpenetração da população cabo-verdiana, destacando-se dois elementos também preponderantes na formação brasileira: o afro-negro e o europeu; 3) a negligência dos pensadores portugueses, relativamente a Cabo Verde, em matéria de estudos referentes às zonas de cultura africana de onde são originários os principais stocks populacionais importados no Brasil; 4) o conhecimento sobre os estudos levados a efeito no Brasil, por Nina Rodrigues (1862-1906), Artur Ramos (1903-1949) e Gilberto Freyre (1900-1987) (…); 5) a insularidade atlântica como propriedade da identidade cabo-verdiana.
Enunciação formal da “cabo-verdianidade”
A crónica de Delfim de Faria, publicada no Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, tem como título “Caboverdianidade”. Trata-se de uma unidade lexemática que, no texto da crónica, tem cinco frequências. Além do título, a primeira ocorrência verifica-se na fala de Baltasar Lopes, o principal entrevistado. Ele usa o termo pela primeira vez, durante a conversa, quando se refere à “identidade espiritual com o Brasil”. Chama a atenção para o facto de a motivação da resposta, fora de qualquer snobismo decorativo, tinha em conta “quatro séculos de caboverdeanidade”.
Baltasar Lopes volta a recorrer à categoria ontológica, caboverdeanidade, quando é solicitado a falar da expressão máxima da morna, associando o nome de Eugénio Tavares (1867-1930). Afirma o seguinte: “Foi Eugénio quem primeiro concretizou em verso, nas mornas e nas manilhas, o sentimento da Caboverdeanidade”. E acrescenta: “Pensa mesmo o nosso Grupo em organizar-lhe um in-memoriam definindo a contribuição que ele trouxe e que perdura sempre para um sentido nosso, não só quanto ao teor de vida como relativamente às bases em que se assentará uma literatura cabo-verdiana de sentido cultural autónomo”.
Num outro registo do discurso directo, Delfim de Faria transcreve a fala de Baltasar Lopes em que há mais uma frequência da categoria ontológica cabo-verdiana. Ocorria a propósito da resposta acerca das “finalidades do ‘Grupo Claridade’”. Baltasar Lopes considerava que o “Grupo”pretendia “condensar os elementos dispersos da Caboverdianidade para lhe definir o ‘estilo’”. Um outro interlocutor mencionado por Delfim de Faria é o “jovem artista Jaime Figueiredo”.
Crítica de Onésimo Silveira
Ao caracterizar os jovens que viriam a fundar a revista “Claridade”, Delfim de Faria teceu um comentário, através do qual os identifica tendo como critério “uma formação exclusivamente europeízante”. Assenta aí igualmente a crítica verrinosa de Onésimo Silveira, um membro da geração literária seguinte. No seu ensaio “Consciencialização na literatura cabo-verdiana”, publicado em 1963 pela Casa dos Estudantes do Império, assume a sua posicionalidade geracional e considerava que “Cabo Verde é um caso de regionalismo africano”. Tal perspectiva suscita a crítica aos “homens da geração claridosa” que tinham a “a convicção de uma originalidade regional caboverdiana” significando que Cabo Verde seria um caso de regionalismo europeu. Onésimo Silveira sustenta ainda que “o problema decisivo não é o de saber quais as contribuições humanas que predominam nas Ilhas, mas, diversamente, o de tornar o homem comum caboverdiano consciente de seu destino africano e possibilitar-lhe os meios que conduzam à realização autónoma do mesmo destino”. É curioso constatar que Onésimo Silveira não emprega a categoria em análise, exceptuando o texto da dedicatória em que refere o nome de Pedro Cardoso (1890-1942), como “exemplo de caboverdianidade”.
Ora, o ensaio de Onésimo Silveira constitui um importante diálogo cruzado das literaturas africanas, no contexto colonial. A experiência vivida em Angola revela-se crucial porque está na origem da comparação que estabelece entre a literatura angolana e a literatura cabo-verdiana. Por isso, o ensaio visava proceder à demonstração do facto de a literatura cabo-verdiana estar “profundamente ferida de inautenticidade”. Neste sentido, entendia que numa terra como Angola, era “mais do que nunca imperativo definir-se, uma consciencialização autêntica, étnica e culturalmente”. Não era isso que ocorria em Cabo-Verde onde, em seu entender o Movimento Claridoso tinha criado “uma literatura de exportação”.
Conclusão
Portanto, o desacordo que se analisa na existência de proponentes e oponentes é bem representativo das dinâmicas culturais anticoloniais. Se em Cabo-Verde, a dialéctica consiste na contradição entre o regionalismo europeu e o regionalismo africano, em Angola a tensão dialéctica da categorização ontológica exprime-se por via da oposição entre a angolanidade e a crioulidade. Em última análise, perante o possível carácter benigno ou maligno do luso-tropicalismo, torna-se evidente que as categorias ontológicas que configuram a tensão e o desacordo constituem-se como instrumentos que podem estar ao serviço da organização do conhecimento para referir as condições de existência e da identidade dos membros de Angola e Cabo-Verde, enquanto comunidades históricas. Em suma, existem razões epistémicas para defender uma crença semelhante.
*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 08 de Outubro, aqui republicado com a autorização do autor.
*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 08/10/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/essencialismos-contemporaneos-da-biblioteca-colonial-iv/