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Essencialismos contemporâneos da Biblioteca Colonial -V

Luís Kandjimbo |*

As remissões feitas aos textos de Filinto Elísio de Menezes (1924-1990) e Onésimo Silveira (1935-2021), juntam-se aos de Gabriel Mariano (1928-2002), Manuel Duarte (1929-1982) Costa Andrade (1936-2009),Baltasar Lopes (1907-1989), Agostinho Neto (1922-1979),Amílcar Cabral (1924-1973), Eduardo Mondlane (1920-1969),José Craveirinha (1922-2003) e Mário Pinto de Andrade (1928-1990). Interessam-nos as práticas enunciativas desses intelectuais e escritores Africanos que configuram o campo do debate e do efectivo exercício do poder de definição de conceitos e categorias que se resumem na categorização ontológica que temos trazido à conversa.

Poder de definição

O que é que existe? As práticas enunciativas desses intelectuais e escritores Africanos, enquanto fenómenos, existem? Estas são perguntas com que se pode abrir a tematização do nosso tópico de conversa. Com efeito, a categorização ontológica com que se opera no discurso cultural em África e nas Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, em especial, ergue-se sobre as fundações de um poder de definição exercido por sujeitos que revelam uma pertença a comunidades históricas cujas culturas, necessárias à sua existência, não são contingentes. Ao proceder à leitura de textos assinados pelos autores mencionados, percebemos que no seu horizonte está a refutação das teorias evolucionistas e neodarwinistas que sustentavam a política colonial portuguesa, especialmente a que era dirigida às chamadas “elites das províncias portuguesas de indigenato”, isto é, os “assimilados” naturais de Angola, Guiné e Moçambique. Os cabo-verdianos e são-tomenses constituíam a excepção dessa política específica do “indigenato”.

No que diz respeito ao poder de definição, podemos trazer outros exemplos de intelectuais e escritores das gerações que emergem nas décadas de 40 do século XX. Assim, temos Agostinho Neto, Eduardo Mondlane, José Craveirinha. O que fazia Agostinho Neto, quando em 1959, na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, proferiu uma palestra com o título: “Introdução a um colóquio sobre poesia angolana”? O que fazia José Craveirinha com os textos sobre o “folclore moçambicano”, publicados no jornal “O Brado Africano” ou no “Cooperador de Moçambique”?Qual o alcance da abordagem de Eduardo Mondlane, quando inscreve a literatura na sua interpretação da “revolta dos intelectuais”, no seu livro “Lutar por Moçambique” (1969)?

Os textos ensaísticos a que me refiro são de leitura obrigatória. Publicados nas décadas de 50 e 60 revelam uma capacidade de exercício do poder de definir conceitos. É o que todos eles fazem, ao reflectir sobre a poesia angolana, o folclore moçambicano e o papel dos intelectuais na luta de libertação nacional. É imperioso caracterizar os sujeitos e o mundo de que emanam tais manifestações da cultura. Donde, a necessidade de elaborar conceitos que são igualmente categorias.

 
Agostinho Neto

No referido texto, Agostinho Neto desenvolveu o seu conceito de poesia angolana, tendo como fundamento a tradição literária antiga. Deste modo, considera que a “nossa poesia tradicional não pode nem deve ser entendida no sentido da poesia europeia, ainda que eu pense que ambas as formas se venham aproximar no futuro”. Foi mais longe, caracterizando a genologia da poesia tradicional angolana: “Existe sob a forma de provérbios, adivinhas, letras de músicas, fábulas, etc. e exprimem-se nas nossas línguas, o que lhes empresta um ritmo e características formais com diferenças flagrantes da poesia portuguesa”. Este exercício de caracterização é complementado pela crítica aos chamados “assimilados” cujo drama reside no desconhecimento das línguas, impedindo que “a aproxime do intelectual junto do povo”e “cava um fosso bem profundo entre os grupos chamados ‘assimilados’ e ‘indígena’.” Agostinho Neto indaga-se sobre relevantes questões teóricas da literatura que, ocupando a boca da cena filosófica africana, continuam a atrair atenção, décadas depois. A palestra foi editada pela União dos Escritores Angolanos com o mesmo título, na década de 80 do século XX.

 
José Craveirinha

Na mesma senda, se inscreve José Craveirinha com as suas reflexões sobre “o folclore moçambicano e as suas tendências”.Entre tantas, procura responder à pergunta: Qual é a natureza da marrabenta, enquanto arte de dançar? As respostas têm tudo a ver com problemas filosóficos cujo cerne é a identificação dessa forma de expressão artística.

Dedicando tempo à ontologia da dança, escreveu preciosos textos sobre a “marrabenta”, “termo luso-landim, a pôr em evidência o processo osmótico dos empréstimos culturais, tal como sucede na linguagem”. No dizer de Craveirinha, deriva do “vocábulo português rebenta e prefixo ronga ‘ma’”. Trata-se da “mais popularizada dança da região ao sul do Save, consagrada principalmente na área de Ka-Pfumo ou Lourenço Marques.” Os seus textos foram reunidos em livro por uma editora moçambicana, sob o título: “O Folclore Moçambicano e as suas Tendências” (2009).
Eduardo Mondlane

Para Eduardo Mondlane a luta pela independência de Moçambique teria de contar com essa «pequena minoria instruída que estava em posição de seguir o mundo» e que tinham  contactos adequados com o mundo exterior e adquirido o hábito de pensamento analítico, isto é, o equipamento necessário para compreender o fenómeno colonial como um todo. Eduardo Mondlane identifica a partir daí um novo tipo de resistência, a resistência puramente cultural, numa tradição que vem do século XIX. Os seus protagonistas são os intelectuais, artistas e escritores. A nova resistência inspirou um movimento em todas as artes que começou durante o século e influenciou poetas, pintores e escritores de todas as colónias portuguesas. Refere expressamente os nomes dos pintores Malangatana e Craveirinha, o escritor Luis Bernardo Honwana, os poetas José Craveirinha e Noémia de Sousa. Além disso, tece comentários acerca da qualidade estética das obras destes homens e mulheres de cultura. Aborda as características do que designa por «poesia política», destacando três temas: 1) reafirmação da África como a pátria mãe, lar espiritual e contexto de uma nação futura; 2) a ascensão do homem negro em outros lugares do mundo, o apelo geral à revolta; 3) os sofrimentos actuais do povo comum de Moçambique, sob trabalho forçado e nas minas da África do Sul.

Portanto, na presente secção quisemos tipificar enunciações discursivas através das quais se definem problemas, autênticos problemas filosóficos. As filosofias nacionais dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa não podem prescindir desses discursos e práticas, em todos os domínios da vida, cuja importância é incomensurável.

 
Conexões conceptuais

A teoria da definição dos conceitos constitui um importante capítulo do discurso do filósofo norte-americano Jerry Fodor (1935-2017). O seu livro prova isso mesmo: “Concepts. Where Cognitive Science Went Wrong” (Conceitos. Onde está o erro das ciências cognitivas) (1998). Foi ele que considerou os conceitos como estruturas complexas, integradas por constituintes. Fodor entendia ser relevante ter em conta a conexão entre o conteúdo e a necessidade dos conceitos, bem como a conexão entre o conceito de individuação e a posse do conceito. Por um lado, o que diz respeito ao conceito de definição é verdadeiro para todo o campo coberto pelo conceito. Por outro lado, a definição de um conceito permite a sua descrição estrutural. Por último, acrescenta que posse do conceito significa que ele é constituído por partes. Assim, a conexão entre a posse do conceito e o conceito individuação. Portanto, se o conceito é um instrumento de representação da realidade que nos circunda, a definição está indissoluvelmente associada à eficácia do sentido e das inferências que o conceito propicia. Isto porque a definição torna possível a avaliação semântica do conceito, enquanto representação do mundo. No dizer de Jerry Fodor, em determinados círculos ocidentais da filosofia analítica anglo-saxónica, as definições deixaram de suscitar interesse. Por um lado, desvalorizavam-se as conexões inferenciais, importando mais as conexões intrínsecas dos constituintes do pensamento. Por outro lado, se pretendia que as conexões conceptuais intrínsecas substituíssem as conexões semânticas. Ora, com as referências que fazemos à problematização da definição de conceitos de Jerry Fodor não estabelecemos quaisquer vínculos de quem subscreve indiscutivelmente a sua teoria. Trata-se apenas de uma forma de ilustrar a natureza do debate que se trava, nesse domínio.

 
Definições neodarwinistas

Como vimos, o lusotropicalismo e a teoria da crioulidade constituem fundamentos de um domínio a que se adequa a denominação de estudos literários darwinistas. Pode-se falar de um darwinismo no campo dos estudos literários africanos. É a escola que se organiza em torno das teses sobre a formação de “ilhas crioulas”, defendidas por Mário António Fernandes de Oliveira (1934-1989). A sua base é a teoria da selecção sexual de Darwin segundo a qual os humanos desenvolvem-se através da competição pela reprodução. Faz-se eco do pensamento bioessencialista do zoólogo e etólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989) que, na segunda metade do século XX, escrevia: “Todo o conhecimento humano deriva de um processo de interacção entre o homem como uma entidade física, um sujeito activo e perceptivo, e as realidades de um mundo externo igualmente físico.” Isto quer dizer que os códigos linguísticos e culturais não obedecem apenas aos seus próprios princípios internos. As estruturas fisiológicas têm igualmente poderes de comando. Como vimos, recupera-se aí a teoria darwinista da selecção. Os indivíduos lutam pela sobrevivência baseada em escassez de alimentos, território e parceiros de acasalamento. Portanto, indivíduos que forem dotados de características de superioridade estão destinados a sobreviver e a reproduzir-se. Tais características transmitem-se geneticamente aos descendentes.

Por conseguinte, a teoria luso-tropicalista da formação de “ilhas crioulas”, defendidas por Mário António Fernandes de Oliveira, é expressão de um neodarwinismo que rejeita a autonomia da cultura e da história. Opera-se com uma epistemologia em que a posição do sujeito cognoscente perante o mundo, enquanto objecto cognoscível, não conta. Conta apenas a relação entre um sujeito cognoscente que é um mero organismo no seu ambiente. Por outras palavras, é um tipo de essencialismo que dá primazia aos modelos do desenvolvimento biológico. Trata-se da concretização dos postulados da epistemologia evolucionista, segundo os quais o desenvolvimento das espécies biológicas é base do desenvolvimento da ciência de que o filósofo inglês de origem austríaca, Karl Popper (1992-1994), e o filósofo norte-americano W.O.Quine (1908-200) são alguns dos seus arautos.

Admitindo-se a hipótese de recurso a uma concepção darwinista da ordem cultural, estaria em causa um processo de adaptação colectiva que consistiria em ajuste temporário das propriedades inatas dos organismos e as condições do seu ambiente. Não haveria lugar para a cultura, nem para a história.


Função taxonómica das categorias

Em “Categories and Concepts” (Categorias e Conceitos), Edward E. Smith (1940-2012)e Douglas L. Medin propõem uma perspectiva que visa explorar a função taxonómica das categorias e dos conceitos. Para o efeito consideram que as categorias e os conceitos desempenham duas funções: 1) Categorização, através da qual  se procura determinar o facto de uma instância específica ser elemento constituinte de um conceito ou se um conceito específico é um subconjunto de outro; 2) Combinação conceptual, permite  ampliar a taxonomia combinando conceitos já existentes e novos. Para os dois autores, os conceitos são essencialmente dispositivos de reconhecimento de padrões, o que significa que os conceitos são usados para classificar novas entidades e para elaborar inferências sobre tais entidades.

Podemos concluir que no arsenal conceptual da teoria luso-tropicalista da formação de “ilhas crioulas”, defendida por Mário António Fernandes de Oliveira e seus seguidores, recuperam-se os postulados da epistemologia evolucionista, assente na  selecção sexual de Darwin. Por essa razão, o desenvolvimento das espécies biológicas é o modelo para as ciências sociais e humanas. O potencial explicativo da cultura e da história é reduzido a zero. A categorização não desempenha a função de reconhecimento de padrões, muito menos a de combinar conceitos já existentes com os novos.

 
Conclusão

Portanto, quando intelectuais, investigadores, escritores e críticos literários dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, tais como, Leopoldo Amado (1960-2021), Gilberto Matusse e Carlos Espírito Santo, com os seus livros, operacionalizam, respectivamente, as categorias de guineidade, moçambicanidade e santomensidade, em linha com os de angolanidade e cabo-verdianidade, manifestam mais uma vez a consciência de comunidades históricas que têm necessidades ontológicas. É o que já tinha sido feito pelos intelectuais das gerações anteriores. Se se tiver em atenção a experiência da luta anticolonial e a desmistificação dos dogmas do luso-tropicalismo, poder-se-á dizer que a ontologia comparada constitui aqui uma boa base para avaliar o conteúdo, os objectos e as propriedades dessas categorias. Longe de qualquer nominalismo, elas não valem apenas pela morfologia da palavra que está na sua origem como acontece com as categorias neodarwinistas da crioulidade. Importa revelar a sua dimensão substantiva. Podendo aplicar-se a fenómenos diferentes, o uso de conceitos como crioulo e crioulidade, nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, não é homogéneo. As suas principais ambiguidades semânticas decorrem do facto de as perspectivas neodarwinistas pretenderem obter equivalências entre a miscigenação biológica, por um lado, e as recusas e empréstimos do diálogo intercivilizacional, por outro lado.


*Texto publicado no Jornal de Angola, no dia 08 de Outubro, aqui republicado com a autorização do autor.


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 08/10/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/essencialismos-contemporaneos-da-biblioteca-colonial-v/

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. O Doutor Luís Kandjimbo é um investigar acérrimo da cultura africana que, segundo meu entender leva os seus queridos estudantes a pensarem profundamente no contexto histórico dos povos africanos e perspectivar uma melhor compreensão dos fenómenos ora mencionados, tendo em vista a longa duração.
    De facto, ter Kandjimbo como professor, é ter uma biblioteca viva à disposição.

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