0

Existem modelos para literaturas e filosofias nacionais?

EQUIVÓCOS GEOFILOSÓFICOS

Luís Kandjimbo |*

Todas as literaturas e filosofias europeias são nacionais. Esta é a conclusão a que se chega, quando se frequenta a leitura dos manuais de história da literatura e da filosofia ocidentais. Para o efeito, basta prestar atenção ao modo como se estabelece a conexão das literaturas e das filosofias com o território nacional. É possível deduzir daí que em África e na Ásia as literaturas e filosofias são igualmente nacionais? Se assim não for, há alternativas em matéria da sua conceptualização? Eis a nossa proposta de conversa.

Equívocos eurocêntricos

As filosofias europeias têm sido fonte de muitos equívocos. A filosofia francesa é uma delas. Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992) são dois filósofos franceses que, reproduzindo as piadas do “milagre grego” de Ernest Renan (1823-1892)e o helenocentrismo filosófico de Martin Heidegger (1889-1976), cunharam a moeda geofilosófica europeia com o seu livro “Qu’est-ce la Philosophie?”, [O que é Filosofia?]. No capítulo que dedicam ao tópico, reconhecem que a paternidade dessa moeda deve ser atribuída ao filósofo alemão Friederich Nietzsche (1844-1900).

Os dois filósofos franceses não hesitam em afirmar que “não é só o filósofo,como homem, que tem nação. É a filosofia que se reterritorializa sobre o Estado nacional e o espírito do povo (na maioria das vezes o do filósofo, mas nem sempre)”. É a essa conexão que designam por “geofilosofia” em cuja génese está o nome do filósofo alemão. Gilles Deleuze e Félix Guattari consideram que Nietzsche teve o mérito de ter procurado determinar as características de três filosofias nacionais, a francesa, a inglesa e a alemã.

Filosofias nacionais

Os argumentos que Gilles Deleuze e Félix Guattari invocam para a interpretação das propostas de Nietzsche sujeitam-se a testes de consistência, quando se propõem responder às seguintes perguntas: Por que razão apenas três países europeus conseguiram colectivamente produzir filosofia no mundo capitalista? Por que razão se excluem a Espanha e a Itália? As respostas continuam a ser eurocêntricas, em virtude de colherem o seu fundamento no critério da conexão nacional e da territorialidade.

Para Deleuze e Guattari, a historiografia da filosofia europeia tem os seus pilares no eixo franco-alemão. É aí que se define a chamada “filosofia continental”. Distingue-seda filosofia analítica cujo território dominante corresponde ao espaço ocupado pelas unidades políticas que integram a Grã-Bretanha. Assim, a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha são as potências filosóficas europeias, legítimas herdeiras do “milagre grego” e seu património. Foi o ensaísta e filósofo francês Ernest Renan que no seu “Souvenirs d’Enfance et de Jeunesse”, [Memórias de Infância e Juventude], 1897, formulou a ideia do “milagre grego”. Ao conhecimento que já detinha do lado do “milagre judaico”, viria a juntar-se o “milagre grego”. Chegou a tal conclusão, quando, na sua visita à Grécia, viu a Acrópole de Atenas, a obra arquitectónica erguida na colina rochosa, dos tempos de Péricles. Consequentemente, teve a revelação do divino e oresto do mundo inteiro lhe parecia bárbaro.

Ao apropriarem-se desse sentimento de revelação de Ernest Renan, os dois filósofos franceses referem-se à geografia como uma contingência determinante que permite situar a Gréciana história da filosofia ocidental. Como vimos, a conexão da geografia e da filosofia corresponde a um pensamento de inspiração nietzschiana. Por isso, Deleuze e Guattari reivindicam as virtudes de um passado glorioso de que, para eles, a filosofia moderna ocidental é o esteio, tendo a sua expressão máxima no Estado-nação e no capitalismo europeu, à semelhança do que aconteceu com a filosofia antiga ocidental cujo berço é a Grécia.

Apesar do legado civilizacional grego, a história das filosofias nacionais europeia sergue-se sobre as ruínas de guerras consecutivas. Há uma história de longa duração caracterizada por conflitos violentos e sanguinários. Por exemplo, as guerras que conduzem à afirmação de nacionalismos, entre os séculos XVI e XVIII. Seguem-se as guerras napoleónicas, a guerra de 1870, a I e II Guerras Mundiais. Todos esses conflitos gravitam em torno de hegemonias e nacionalismos políticos. Não existem outras potências filosóficas. Por conseguinte, a Áustria, a Bélgica, a Espanha, a Holanda, a Itália e outros territórios periféricos como Portugal, pouco ou nada representam. No dizer de Deleuze e Guattari, o que caracteriza esses territórios periféricos é a inexistência de dispositivos institucionais para a filosofia, além da excessiva influência do catolicismo e proximidade à Santa Sé.

As rupturas e os cismas religiosos, perantea influência do catolicismo e da Igreja de Roma, constituem uma dastraves-mestras da Modernidade Ocidental. Com a consolidação dos modernos Estados-nação europeus, apesar das suas especificidades, desenvolveram-se as filosofias nacionais paralelamente às literaturas nacionais. Aliás, muitos filósofos são também escritores. A nação passa a ser a comunidade política perante a qual os filósofos e os escritores manifestam o sentimento de pertença.

Características descritivas

No artigo intitulado “Au-delà de l’histoire et du caractère: l’idée de philosophie française, la Première Guerre mondiale et le moment-1900” [Para lá da História e do Personagem: A Ideia da Filosofia Francesa, a Primeira Guerra Mundial e o Momento-1900], publicado na “Revue de Metaphysique et de Morale”, em 2001, Frédéric Worms elabora uma síntese histórica, através da qual fornece uma interessante caracterização da filosofia francesa, no princípio do século XX. Para tal, Frédéric Worms articula uma perspectiva do pensamento filosófico francês, tendo em conta os seguintes aspectos: (1) o vínculo de sucessão ou influência; (2) a unidade filosófica que permite reunir obras com características filosóficas comuns; (3) caracterização de uma filosofia nacional, baseada num suposto carácter antropológico nacional. Frédéric Wormsentende que semelhantes operações permitem identificar uma “filosofia francesa”. De resto, este era o procedimento adoptado por Henri Bergson(1859-1941), quando falasse de “filosofia francesa”, enquanto filosofia nacional.

Henri Bergson

O filósofo Henri Bergson foi um dos arautos do referido carácter antropológico nacional, elevando ao mais alto nível a evolução da filosofia moderna francesa. Demonstra-o fervorosamente na produção de textos resultantes da sua actividade tribunícia nas primeiras décadas do século XX, reunidos em “Mélanges” e publicados a título póstumo, em 1972. Apesar de reconhecer que em outros lugares, surgiram igualmente filósofos geniais, afirma com algum chauvinismo que a verdadeira criação filosófica original teve lugar em Françanuma “continuidade ininterrupta”.Numa alusão às rivalidades entre a França e a Alemanha, Henri Bergsonrefere-se aos méritos da construção de sistemas filosóficos. Mas sublinha, presumivelmente, o facto de tais sistemas dependerem de materiais, ideias edos métodos de origem francesa. Em conclusão, com alguma jactância afirma: “Toda a filosofia moderna deriva de Descartes”. Está subjacente a rivalidade filosófica franco-germânica. No contexto da I Guerra Mundial, Henri Bergson defendia a ideia segundo a qual os países latinos europeus como a França seriam aqueles que, representando a fonte para a nova vida, teriam inventado teorias contra aqueles que negavam sistematicamente a liberdade e a força criativa do espírito.

Vincent Descombes

Na mesma senda inscreve-se um filósofo contemporâneoVincent Descombes (n.1943), quando se lê o seu livro “Le Même et l’Autre. Quarante Cinq Ans de Philosophie Française (1933-1978), [O Mesmo e o Outro. Quarenta e Cinco anos de Filosofia Francesa (1933-1978)]. Ele elabora aí o conceito de “filosofia francesa” como filosofia que é veiculada em francês, admitindo-se a possibilidade de ser meio de transmissão de pensamentos de outros povos e línguas, tais como o grego, o latim, o inglês ou o alemão. Reitera a ideia segundo a qual a filosofia francesa nasceu quando Descartes se propôs respondera os “Ensaios” de Montaigne, em francês, com um discurso sobre o método. Acrescenta ainda que os filósofos alemães, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Heidegger, entendiam de igual modo que é a “filosofia francesa” que inaugura toda a filosofia moderna.

Johann G. Fichte

O filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte(1762-1814) representa a posição alemã na referida rivalidade filosófica franco-germânica, especialmente com os seus “Discursos à Nação Alemã”.Fichte andava preocupado com os fundamentos do que poderia ser considerado como “germanidade”. Por isso, desenvolveu um estudo histórico intensivo sobre a resistência das antigas etnias germânicas no tempo da invasão romana. É disso que se alimentou a redacção daquele texto. A fonte principal foi a obra de Tácito, “De Origine et situ Germanorum”, [Da Origem e Situação dos Germanos], também designada por “Germânia”.Para Fichte o território do Estado e a língua constituíam dois importantes traços caracterizadores de uma nação. A este propósito, destacava, em primeiro lugar, as fronteiras internas dos Estados, formadas pelas fronteiras naturais. Em segundo lugar, os seus membros que, falando a mesma língua, mantinham-se unidos através de laços invisíveis. Em terceiro lugar, o sentimento de pertencerem a um todo indivisível. Em quarto lugar, a impossibilidade de anação ser assimilada por um outro povo com origem e língua diferentes.

É unanimemente reconhecido que os “Discursos à Nação Alemã” de Fichte faziam a apologia de uma história do império alemão, fundada nafilosofia, cujas origens remontavam à tradição do idealismo alemão do fim do século XVIII e dealbar do século XIX. Trata-se de um texto publicado em Maio de 1808, poucos meses antes do fim da ocupação francesa, em Dezembro do mesmo ano. O retorno do rei ocorreu no princípio do ano seguinte.

Os “Discursos à Nação Alemã”foram apresentados a audiências alemãs, empalestras públicas ao domingo, na cidade de Berlim, durante a ocupação francesa. Quando, em 1813, Frederico Guilherme III declarou guerra à França, Fichte reflectia sobre a filosofia alemã. Em tom messiânico, defendia que a verdadeira filosofia tinha a sua origem na pura vida divina que, por ser alemã, era original. Nesse sentido, reivindicava: “Eu sou o verdadeiro fundador de uma nova era, a da clareza […] Todos os outros querem mecanizar, eu quero liberar […] o conteúdo infinito dessa liberdade[…]”.

Há autores que, no contexto da “guerra de libertação” que os alemã eslevavam a cabo contra Napoleão, em 1813-14,não atribuem qualquer efeito perturbador a esse texto de Fichte. Já na segunda metade do século XIX, a sua notoriedade alcançou elevados níveis reputacionais, tendo o seu fervor nacionalista alemão contribuído para o interesse que o público passou a conferir à sua obra, muito mais tarde, após a derrota da França na guerra franco-prussiana. O prestígio de Fichte aumentou, no decurso da I Guerra Mundial, tendo sido citado por Friedrich Ebert (1871-1925), primeiro presidente da República de Weimar, no discurso inaugural, proferido na Assembleia Nacional, em 6 de Fevereiro de 1919.

Histórias literárias nacionais

Como vimos, as literaturas e filosofias europeias são qualificadas como nacionais. A sua coexistência tem  como critério a conexão das literaturas e das filosofias com o território nacional. Se as filosofias nacionais europeias iniciam os processos de consolidação no século XVIII, as elaborações das primeiras histórias literárias nacionais europeias registam-se nos séculos XV e XVI. Em 1495, foi publicada, na Alemanha, a primeira que reúne informações sobre os autores de uma determinada nação europeia. Em França, tal aconteceu em 1581. Na Grã-Bretanha, o momento seminal data de 1545. Estas referências históricas têm relevância, na medida em que a existência dos Estados-nação requer igualmente a produção de discursos suportados por histórias literárias nacionais e respectivos cânones literários.

Ora, a problemática das literaturas nacionais é a âncora que trazemos aqui para responder às perguntas formuladas, no início da presente conversa. À luz das experiências que o diálogo intercivilizacional propicia, é possível deduzir daí que em África e na Ásia, por exemplo, as literaturas e filosofias são igualmente nacionais? Se assim não for, há alternativas em matéria da sua conceptualização?

Conclusão

Portanto, o tópico para a próxima conversa permitirá abrir um caminho que aguce a nossa curiosidade e ponha à prova a robustez de conceitos com sentidos universalizáveis, mas carregando experiências históricas insusceptíveis de generalizações, quando ignoram as virtualidades da ética do desacordo. Estou a referir-me, por exemplo, a conceitos como Estado, filosofia, literatura, línguas, nação e outros conceitos conexos.

Sob uma outra focagem, vou propor a releitura  do livro de Adrien Huannou “La Question des Littératures Nationales en Afrique Noire” [A Questão das Literaturas Nacionais na África Negra],1989, de que já aqui falei. Perante os equívocos geofilosóficos europeus, Adrien Huannou sugere perguntas como estas: “São nações os actuais Estados africanos formados após a descolonização?”; “Os acervos literários dos sistemas culturais dos Estados africanos constituem literaturas nacionais?”

Por outro lado, valerá a pena revisitar os conceitos de “colónia filosófica”, formulado por Catherine König-Pralong, a historiadora da filosofia de nacionalidade suíça, que é a autora do livro “La colonie philosophique. Écrire l’histoire de la philosophie aux XVIIIe-XIXe siècles” (2019) [A Colónia Filosófica. Escrevendo a História da Filosofia nos Séculos XVIII-XIX].  Ela opera com uma “concepção geopolítica da filosofia” e com a noção de “dupla colonização académica”.


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 30/07/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/existem-modelos-para-literaturas-e-filosofias-nacionais/

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *