Luís Kandjimbo |* Escritor
No passado dia 15 de Novembro [de 2021] animei uma conferência na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a convite da minha amiga Ana Paula Tavares, coordenadora de um Grupo de Investigação do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (Culturas e Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa) daquela universidade.
Foi uma oportunidade para revisitar tópicos relevantes dos debates filósóficos que se vêm desenvolvendo no nosso continente. Propus uma reflexão sobre dois filósofos e duas escolas da Filosofia da Literatura em África: Abiola Irele da Escola da África Ocidental e Georges Ngal da Escola da África Central. Tive a oportunidade de cruzar com os dois ícones em eventos científicos, realizados em Paris e Dakar, na passada década de 80.
Associando-me à celebração do Dia Mundial da Filosofia, assinalado na passada quinta-feira, trago para a conversa de hoje algumas notas sobre a vida e obra de Georges Ngal (na imagem), um filósofo da literatura democrata-congolês.
Georges Ngal e as gerações de filosófos da literatura
É sabido que as correntes dominantes da filosofia da literatura ocidental cultivam uma ignorância epistémica relativamente à singularidade dos problemas suscitados pelas literaturas africanas. Apesar disso, a Filosofia e a Teoria das Literaturas Africanas, bem como a prática da Crítica Literária constituem presentemente domínios que mobilizam a atenção de algumas comunidades científicas e disciplinares do mundo, merecendo um legítimo lugar no campo das Humanidades, no presente século.
Chega-se à semelhante conclusão quando, numa perspectiva histórica, se avalia a obra de eminentes Africanas e Africanos que se dedicaram e dedicam aos estudos literários e humanísticos no continente, nos diferentes espaços insulares e diásporas africanas espalhadas pelo planeta, num esforço que se inscreve na edificação do diálogo entre a Filosofia e a Literatura. O recentemente publicado livro “African Philosophical and Literary Possibilities:Re-reading the Canon” [Filosofia Africana e Possibilidades Literárias: Relendo o Cânone], editado por Aretha Phiri da Universidade Rhodes da África do Sul, é uma demonstração disso.
No domínio da relação que se estabelece entre a Filosofia e Literatura, distinguem-se quatro gerações de académicos, escritores e intelectuais Africanos e Afrodescendentes das diásporas.
1ª Geração (1906-1925): Alexis Kagamé (Rwanda,1912-1981), Aimé Césaire (Martinica,1913-2008), Leopold Sedar Senghor (Senegal,1906-2001), Ezekiel Mphalele (África do Sul,1919-2008), Nadine Gordimer (África do Sul, 1923-2014), Eldred Jones (Serra Leoa,1925-2020) Daniel Kunene (África do Sul,1923-2016).
2ª Geração (1926-1939): Mário Pinto de Andrade (Angola, 1928-1990), Jean-Pierre Makouta Mboukou (Congo,1929-2012), Chinua Achebe (Nigéria,1930-2013), Mohamadou Kane (Senegal, 1933-1995), Georges Ngal (Congo-Democrático,1933), Wole Soyinka (Nigéria,1934), Sophie Oluwole (Nigéria,1935-2018), Abiola Irele (Nigéria,1936-2017), Olabiyi Yai (Benin,1939–2020), Ngugi wa Thiong’o (Quénia,1938), Taban Lo Lyong (Uganda,1939), Thomas Melone (Camarões,1934-1996).
3ª Geração (1940-1950): V.Y.Mudimbe (Congo-Demorático, 1941), Ama Ata Aidoo (Gana,1942), Chinweizu (1943), Tidjani Serpos (Benin, 1946), Bodun Jeyifo (Nigéria,1946), Carole Boyce Davies (Trinidad-Tobago,1947), Benoît Okonda Okelo (Congo-Demorático,1947), Kofi Anyidoho (Gana,1947), Pius Ngandu Nkashama (Congo-Demorático, 1947).
4ª Geração (1951-1965): Chidi Amuta (Nigéria,1953), Tanella Boni (Cote d’Ivoire,1954), Kwame Anthony Appiah (Gana,1954), Mamousse Diagne (Senegal, 1955), Jean-Godfroy Bidima (Camarões,1958), Mary Stella Chika (Nigéria,1979).
Nota bio-bibliográfica
Georges Ngal, que pertence à segunda geração de filósofos da literatura, nasceu em Mayanda, província de Bandundu, na República Democrática do Congo, em 23 de Abril de 1933. Formou-se em Filosofia e Teologia no Seminário Maior de Mayidi, dirigido por padres jesuítas. Doutorado pela Universidade de Friburgo, Suiça, em 1968, com uma tese sobre Aimé Césaire, publicada em 1994 pela Présence Africaine, em Paris, sob o título “Aimé Césaire, um Homem em Busca de uma Pátria”. Esta obra não está traduzida em língua portuguesa.
Quando em 1969 regressou ao seu país, Ngal, em substituição do belga Victor-Paul Bol, leccionou a disciplina de Literaturas Africanas de Língua Francesa na Universidade de Kinshasa até 1971. Em seguida, foi transferido para a Universidade de Lubumbashi, onde exerceu a docência até 1980.
A partir de 1973, desenvolveu intensa actividade como professor visitante ou convidado em diferentes instituições na América do Norte e Europa. Esteve vinculado a Middlebury College nos Estados Unidos, às universidades de Montreal, Quebec, Sherbrooke (Canadá), Liège (Bélgica), Nice, Paris IV, Bordeaux III, Grenoble (França) e Bayreuth (Alemanha). É filósofo, romancista e crítico literário.
Durante o período da “zairianização” ou “autenticidade”, proclamada pelo Presidente Mobutu, passou a chamar-se Ngal Mbwil Mpaang.
Tem vasta obra publicada. Destaco as seguintes. Ficção narrativa: Giambatista Viko ou le viol du discours africain, [Giambatista Viko ou o menosprezo do discurso africano] Lubumbashi, Alpha-Omega, 1975; L’errance, [A Errância] Yaoundé, CLE, 1979; Une saison de symphonie [Uma Estação Sinfónica], Paris, 1994; estudos, ensaios e crítica literária: La condition démocratique séquestré du Palais du peuple, [A Condição Democrática Sequestrada a partir do Palácio do Povo] Saint-Denis, Éditions Tanawa, 2002; Tendances actuelles de la littérature africaine d’expression française, [Tendências Actuais das Literaturas Africanas de Língua Francesa] Kinshasa, Mont Noir, 1972; Aimé Césaire, un Homme à la Recherche d’une Patrie, Dakar, NEA, 1975[Aimé Césaire, um Homem em Busca de uma Pátria.], reeditada pela Présence Africaine; Création et rupture en littérature africaine, [Criação e Ruptura nas Literaturas Africanas] Paris, L’Harmattan, 1994; Esquisse d’une philosophie du style négro-africain, [Esboço de uma Filosofia do Estilo Negro-Africano] Saint-Denis, Tanawa, 2000.
Pode dizer-se que toda a obra ficcional e ensaística de Georges Ngal carrega as marcas da metadiscursividade, isto é, regista-se uma reflexão transversal sobre a natureza do dicurso literário africano, com incidência especial em tópicos como a negritude enquanto expressão de um original pensamento filosófico, a crítica literária na tradição oral, o estilo da arte africana, bem como a função de mediação das personagens ficcionais perante o mundo da cultura.
A querela literária de Lubumbashi
Dois romances estão na origem da chamada “querela literária de Lubumbashi”, Entre les Eaux (1973) de Valetin Y.Mudimbe e Giambatista Viko (1975) de Georges Ngal. Para uma melhor compreensão, importa conhecer a fecundidade dos contextos em que emerge a “querela”.
A Universidade Lovanium de Kinshasa, a primeira da actual República Democrática do Congo, foi fundada em 1954, durante a colonização belga. Jogou um importante papel na formação da elite intelectual do Congo. Dez anos após a independência, em 1960, debatia-se o tipo de formação que a universidade proporcionava, no âmbito do necessário processo de africanização.
Ao mesmo tempo, implementava-se a política da “autenticidade”. Em 1970, o Presidente Mobutu tinha lançado o slogan mobilizador, “recurso à autenticidade”. Na sua formulação original, entendia-se que era rigorosamente um meio para alcançar um fim, longe de qualquer apelo ao “retorno”. Tal meio devia conduzir à recusa do povo congolês perante a tentação de “adoptar cegamente ideologias importadas”. Esse debate perdurou até à década de 80. Nessa altura, o centro de gravidade era a luta pela independência cultural.
Ao mesmo tempo, iniciavam-se as reformas universitárias. O governo tinha tomado a decisão de criar a Universidade Nacional do Zaire (UNAZA), após uma manifestação de estudantes da Universidade de Kinshasa (antiga Lovanium). As universidades do país passaram a fazer parte de uma única instituição. A Universidade de Lubumbashi tornou-se o pólo institucional consagrado às Letras e às Humanidades, de cuja Faculdade de Letras Mudimbe chegou a ser Decano. Kinshasa e Lubumbashi eram centros dos debates teológicos e filosóficos que atraiam a presença de eminentes especialistas.
É o caso dos beninenes Paulin Hountondji e Issiaka-Prosper L. Lalèyê. Mudimbe e Ngal, que se tinham conhecido na Universidade Lovanium, na cidade de Kinshasa, em 1970, passaram a trabalhar juntos em Lubumbashi. Ambos fundaram, em 1971, as “Éditions du Mont Noir” com o propósito de assegurar a promoção da literatura congolesa escrita em língua francesa. Nesse contexto, Ngal e Mudimbe, não sendo militantes do MPR, partido único da época, tinham sido cooptados como dirigentes dos seus comités instalados no meio universitário.
Na década de 70 do século XX, corriam anedotas sobre as tensões pessoais, além de rumores acerca de disputas judiciais por crimes de injúria, que entusiasmavam a maledicência nos círculos académicos de Lubumbashi. Data desse período a publicação de Entre les Eaux (1973) [Entre as Águas] de Valetin Y.Mudimbe e Giambatista Viko (1975) de Georges Ngal.
Os dois romances revelam subliminarmente uma controvérsia que opunha Ngal e Mudimbe, através de procedimentos ficcionais satíricos e recíprocos traduzidos no retrato das personagens e nas histórias narradas dos livros mencionados. Pierre Landu, o padre africano, que se junta à luta armada, defendendo os ideais do socialismo, é a personagem de Mudimbe. Por sua vez, Giambatista Viko é a personagem de Ngal. Trata-se de uma figura que se distingue pelo perfil de quem se revela como traidor da sua cultura, enquanto africano.
Há testemunhos sobre essa querela que marcou a história da literatura congolesa, especialmente por aquilo que as obras dos dois professores universitários representam, no âmbito de uma fecunda rivalidade criativa. Aliás, a crispação entre os dois escritores filósofos continuou até à primeira década do novo século. As homenagens prestadas a Georges Ngal, sucessivamente, em 2005, na cidade de Libreville, por ocasião do seu septuagésimo aniversário e, em 2008, na Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Lubumbashi, não contaram com a presença de Mudimbe. O inverso poderá igualmente ter ocorrido.
Ngal e o paternalismo ocidental
A presunção dos europeus e norte-americanos, fundada no preconceito eurocêntrico, segundo o qual a canonicidade da Filosofia e da Literatura legitima-se a partir dos seus critérios e mecanismos institucionais, tem empobrecido o mundo ocidental em geral, como veremos em seguida. Assim, se compreende que as potencialidades filosóficas e metaficcionais da obra produzida por Georges Ngal tenham sido, durante muito tempo, ignoradas nos círculos editoriais e académicos ocidentais. Curiosamente, espera-se que, a partir de Fevereiro do próximo ano, ocorra uma fortuna crítica e editorial a favor de um dos seus romances.
Acontece que “Giambatista Viko ou le Viol du Discours Africain”, o romance de Georges Ngal, foi traduzido por um professor da Universidade de Harvard, David Damrosch, que se vem notabilizando pela prolixa tematização da “literatura-mundo”. Tal facto resultou de um mero acaso. Não é resultado de qualquer conhecimento consistente das literaturas africanas ou da história e literatura do Congo Democrático, em especial.
Em comentários inseridos no seu livro “What Is World Literature?”, [O que é a Literatura-Mundo?], publicado, em 2003, pela Princeton University Press, escreveu o seguinte: “No entanto, o livro parece ter atraído muito pouca atenção fora da República Democrática do Congo, se é que aí também a tenha suscitado. Pelo que eu sei, ‘Giambatista Viko’ nunca foi traduzido, e mesmo os três artigos citados na bibliografia do MLA são todos escritos em francês. No entanto, nenhum desses artigos foi publicado em França. Dois foram publicados no Canadá, um na África do Sul”.
Imediatamente após esse comentário revelador de um patético paternalismo, como se tratasse de um achado arqueológico, seguiu-se a tradução e, consequentemente, o potencial interesse pelo livro de Georges Ngal, nos países de língua inglesa. No seu projecto “Around the World in 80 Books”, David Damrosch já anuncia a publicação do romance com a chancela da Modern Language Association [Associação de Línguas Modernas]. O romance entrará no circuito comercial norte-americano em Março de 2022. Lamentavelmente, é assim que funcionam os mecanismos de marginalização dos escritores Africanos, ao ritmo dos estados de ânimo e interesses eticamente espúrios daqueles que controlam as máquinas institucionais ocidentais.
*Doutorado em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.
[Produção científica do investigador]
Publicado originalmente em 21/11/2021 em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/georges-ngal-um-ignorado-filosofo-da-literatura/