0

Moralidade e estudos da memória

do provérbio à tradição de lembranças

Luís Kandjimbo |*

“Nda ofeka ya pola, akulu vohinla cialwa”

Em exergo, está um provérbio da literatura oral angolana, em língua Umbundu, que é o motivo para a nossa conversa. Numa tradução literal, pode ser enunciado nos seguintes termos: “Se há paz em determinado país, os mais-velhos geriram muitos silêncios”. Um eventual exercício de interpretação conduzir-nos-á ao sentido dos dois núcleos semânticos da proposição, como veremos em seguida

Quatro tipos de questões

A interpretação dos dois núcleos semânticos que conformam a estrutura frásica do provérbio pode suscitar quatro tipos de questões. Em primeiro lugar, a classificação de semelhantes textos e enunciados, enquanto elementos constitutivos do sistema literário oral. Em segundo lugar, avaliar a sua natureza moral, tendo em conta a sua transmissão e pervivência, ao longo de várias gerações. Em terceiro lugar, a necessidade de compreender o alcance moral dos provérbios como expressão da memória social e colectiva. Em quarto lugar, determinar os campos do saber e as disciplinas que se revelam mais aptas a garantir respostas. As Ciências da Cultura, tal como as designava o alemão Ernst Cassirer (1874-1945) e a Filosofia da Cultura são alguns deles.

Durante a segunda metade do século XX, os conceitos de cultura e tradição foram temas abordados no plano da diplomacia multilateral, no contexto de uma agência especializada da ONU, a UNESCO, cujo mandato corresponde aos imperativos de edificação da paz e desenvolvimento harmonioso da humanidade. Pode dizer-se que os debates sobre os referidos conceitos deram lugar à consolidação das Relações Culturais Internacionais e, consequentemente, à construção de um Direito Internacional Cultural. Tais debates culminaram com a Convenção da UNESCO sobre a Protecção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, já aprovada no início do novo milénio, em 2005.No que diz respeito ao rigor conceptual, as convenções e declarações não são suficientemente generosas. Basta referir o facto de o conceito de “cultura”, adoptado na Conferência Mundial do México sobre Políticas Culturais de 1982, não ter sido incorporado nos instrumentos mencionados.

Conceitos de cultura

Na Declaração do México, definia-se a cultura como “o conjunto dos traços distintivos espirituais, materiais, intelectuais e afectivos que caracterizam uma sociedade e um grupo social. Além das artes e das letras, engloba os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”. Do ponto de vista instrumental, a cultura permite revelar a capacidade de os seres humanos reflectirem sobre si mesmos, por força da sua vocação racional, crítica e ética. É expressivamente um conceito pluralista e multicultural, longe dos monismos dominantes em vários Estados-membros da UNESCO, até aquela data. No contexto das negociações multilaterais do Comité Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore, de uma outra agência especializada da ONU, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, por “expressões culturais tradicionais” entende-se quaisquer formas, tangíveis e intangíveis, através das quais se manifestam a cultura e o conhecimento tradicionais. Compreendem as seguintes formas: expressões verbais, (textos narrativos, poesia, provérbios, adivinhas, enigmas e outras narrativas; sinais, nomes e símbolos); expressões musicais, (canções e música instrumental);expressões performativas, (danças, peças teatrais, cerimónias, rituais e outras performances, reduzidas ou não a uma forma material); expressões intangíveis, como produções artísticas, em particular, desenhos, pinturas (incluindo pintura corporal).Neste sentido, o provérbio da literatura oral angolana, em epígrafe, é classificado como património e expressão cultural tradicional de tipo verbal.

Invenção

De acordo com o nosso pressuposto basilar, admitimos que a interpretação daquele texto proverbial requer reflexões que se desenvolvam em torno de alguns eixos: (1) sistema literário oral; (2) transmissão e pervivência, ao longo de várias gerações; (3) a tradição oral como expressão da memória social e colectiva. Assim, afigura-se necessário operar com uma definição do conceito de tradição. O século XX foi igualmente fecundo em debates e definições do conceito de tradição. Ọlabiyi Babalọla Yai (1939-2020)é um dos filósofos e linguistas Africanos que se debruçou sobre o tema, no seu artigo “In Praise of Metonymy: The Concepts of ‘Tradition’ and ‘Creativity’ in the Transmission of Yoruba Artistry over Time and Space” [Em defesa da metonímia: Conceitos de “Tradição” e “Criatividade” na Transmissão da Arte Yorubá no Tempo e no Espaço], publicado na revista “Research in African Literatures”.

As ideias de especialistas Africanos como Ọlabiyi BabalọlaYai apontam para aquele sentido plasmado na feliz formulação que se lê no livro “A Invenção das Tradições”, organizado por iniciativa de dois historiadores ingleses, Eric Hobsbawn (1917-2012) e Terence Ranger (1929-2015), publicado em 1983.  Considera-se aí que tradições são invenções das comunidades humanas, definindo-se como “um conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceites”. São-lhes associados fins que consistem em inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, implicando assim uma continuidade relativamente a um passado histórico determinado. Conclui-se mais uma vez que não existem definições monistas. Como se sabe, os filósofos Africanos protagonizaram intensos debates, entre as décadas de 50 e 80 do século XX, cujas ressonâncias tiveram recepção, sucessivamente, na Carta Cultural Africana de 1976 e na Carta do Renascimento Africano de 2006.Deste modo, compreende-se que os conceitos de cultura, tradição e memória tenham adquirido dignidade nos domínios da Filosofia, quando se tematiza a moral e a política. Aliás, não se pode ignorar o crescente desenvolvimento da Filosofia Africana da Cultura. Para o efeito, o inventário de obras pode ser elucidativo.  Por exemplo: “Philosophy and an African Culture”[Filosofia e Cultura Africana](Kwasi Wiredu, 1980); “African Philosophy as Cultural Inquiry”[Filosofia Africana como Investigação Cultural](Ivan Karp e D. A. Masolo, 2000); “Léopold Senghor. L’Art Africain Comme Philosophie” [Léopold Senghor. Arte Africana como Filosofia] (Souleymane Bachir Diagne, 2007); “L’Art Négro-Africain” [A Arte Negro-Africana] (Jean-Godfroy Bidima, 1997);  “InMy Father’sHouse: Africa in the Philosophy of Culture” [Na Casa de Meu Pai: a África na Filosofia da Cultura](Kwame Anthony Appiah, 1992); “African Literature as Political Philosophy”[Literatura Africana como Filosofia Política](Mary Stella Chika Okolo, 2007).

Memória dilacerada e renovada

No livro de ensaios intitulado “Something Torn and New. An African Renaissance” [Algo Dilacerado e Novo. Renascimento Africano], publicado em 2009, Ngũgĩ wa Thiong’o faz alusão ao renascimento africano como algo dilacerado e renovado, em sentido dialéctico. O título faz sentido na medida em que a linguagem, a lembrança e a memória são temas transversais, à luz das coordenadas do tempo e do espaço.

Contrariamente ao que pensam outros escritores, Ngũgĩ wa Thiong’ o considera que, perante o pesado fardo colonial, os meios de memória africanos não morreram. Os oponentes a que ele se refere entendem que os meios de memória tomados de empréstimo à Europa são igualmente eficazes ou até mais eficazes. Este é o sintoma que, no dizer de Ngũgĩ wa Thiong’o, revela o facto de a Europa ter também plantado a sua memória nos corpos dos colonizados. Para ilustrar os seus argumentos faz recurso ao seu conhecimento da história de Angola. A este propósito, escreve o seguinte: “Conta-se a história de como Dom Afonso, Mani Kongo, rei do Kongo no século XVII, solicitou médicos modernos de Portugal. Não enviaram médicos, mas nomes portugueses, a que juntaram um manual sobre a forma de organizar sua corte, de acordo com um modelo feudal europeu com nomenclatura portuguesa. Na esteira dos nomes vieram cristãos fanáticos, traficantes de escravizados e, mais tarde, colonos portugueses.”

A memória subjacente a esse relato histórico coloca Ngũgĩwa Thiong’o na lista dos que fazem uso de fontes escritas para a reconstrução da tradição. Neste caso, estamos em presença da operacionalização de conceitos de memória e tradição que negligenciam as tradições orais, enquanto fontes. Não é propriamente essa a posição de Ngũgĩ wa Thiong’o. Pelo contrário, reconhece o lugar que as tradições orais ocupam nos sistemas culturais africanos.

Tradições e lembrança

O que são tradições orais? Todas as fontes orais podem ser qualificadas como tradições orais? Estas são algumas perguntas a que o historiador e especialista da África central, Jan Vansina (1929-2017), pretende dar respostas. Para tal define as tradições orais como mensagens verbais que são declarações com as quais se relatam factos de um passado situado para lá da geração contemporânea. A definição do historiador belga não é suficientemente satisfatória, por se tratar de um conceito operatório útil a quem trabalha exclusivamente no domínio da história. Jan Vansina subinha o facto de a característica verdadeiramente distintiva da tradição oral como fonte histórica será sua transmissão oral, por um período cuja duração é superior a uma geração. Jan Vansina tem consciência das limitações da sua definição. Por isso, admite que determinados aspectos sobre os quais dedicou alguma atenção, tais como os factores artísticos, sociais, culturais e mnemónicos sobre o conteúdo das tradições orais, são objecto de estudo de outras disciplinas. Este facto torna-se evidente quando a memória e a lembrança revelam-se vitais, sendo necessário explicar a razão que leva as comunidades humanas a interpretar, comemorar e a cultivar lembranças colectivas. A tradução literal do provérbio em epígrafe “Ndaofekaya pola, akuluvohinlacialwa”:  “Se há paz em determinado país, os mais-velhos geriram muitos silêncios”, bem como a interpretação do seu sentido requerem competências linguísticas, hermenêuticas e comunicativas. Mas os dois núcleos semânticos da estrutura frásica, pressupõem a existência de uma memória. Com as necessárias adaptações, os actos de interpretar, comemorar e cultivar lembranças colectivas não podem ser realizados sem recurso aos dispositivos da memória social e colectiva. Entretanto, o provérbio apresenta a estrutura de um silogismo elíptico e condicional. Mas a proposição aparentemente omissa não impede que a interpretação ocorra e dele se retire a lição moral segundo a qual a possibilidade de manutenção da paz em qualquer comunidade humana depende do comportamento dos membros, das pessoas mais experientes, em virtude de a paz exigir capacidade para gerir silêncios ou não-ditos narrativos.

Memória e conhecimento

De um modo geral, os conceitos de memória têm conexões com fenómenos psicológicos de natureza cognitiva. Mas a sua definição gravita em torno do verbo “lembrar”.Há autores que se têm ocupado com a teoria causal da memória. É o caso de Sven Berneckere Kourken Michaelian. São editores responsáveis por uma das publicações mais recentes sobre Filosofia da Memória, “The Routledge Handbook of Philosophy of Memory”, O [Manual Routledge de Filosofia da Memória], 2017.Eles consideram que quando alguém se lembra de alguma coisa há que ter em conta que aquele que se lembra constrói uma representação do passado, mas a sua representação actual deve-se ao seu passado de representação. Donde a teoria causal da memória. Isto quer dizer que o estado da memória mantém uma relação causal apropriada com a representação passada.

Estudos da Memória

O continente africano e as diásporas de afrodescendentes são parcelas do globo onde a legitimidade para a consagração interdisciplinar dos Estudos da Memória não pode ser posta em dúvida. Entre as várias razões podemos socorrer-nos das palavras de Ngũgĩ wa Thiong’ o com a sua alusão ao renascimento africano como algo dilacerado e renovado, em sentido dialéctico. Por outro lado, justifica-se referência às campanhas de inspiração ética a respeito do passado colonial em África que, nos últimos anos, vêm abalando os meios académicos europeus. 

Ora, os Estudos da Memória distinguem-se pelas suas problemáticas, teorias e abordagens. Entre as problemáticas destacam-se as práticas colectivas de comemoração, a representação e o esquecimento. Quanto às teorias referidas por algumas correntes dominantes, evidenciam-se tendencialmente os modelos e paradigmas da história, dos estudos culturais, da sociologia e da psicologia. Semelhante elenco de teorias está incompleto. Os Estudos Literários memorialísticos e a Filosofia da Memória, apesar de excluídas, são apenas algumas das áreas que já revelaram as suas potencialidades. Efectivamente, a Filosofia da Memória é um dos territórios desse ramo interdisciplinar cujo estatuto tem vindo a ser unanimemente reconhecido. Os sinais multiplicam-se. Há publicação de livros, organizam-se edições especiais, eventos científicos, congressos, conferências, regularmente.

 
Obrigação de esquecimento?

Como vimos, a lição moral que se extrai do provérbio referido admite condicionalmente a possibilidade de a manutenção da paz em qualquer comunidade humana depender do comportamento dos seus membros mais experientes, em virtude de a paz exigir capacidade para gerir silêncios ou não-ditos narrativos. A capacidade de gerir silêncios implica assumir a obrigação de esquecer? Não será um comportamento que se afasta da ética das virtudes? As respostas inscrevem-se no plano da reflexão ética.

Portanto, levanta-se aqui um problema que convoca teorias éticas normativas, tais como o consequencialismo. A interpretação do provérbio permite concluir que o acto de esquecer acontecimentos que prejudicam a paz constitui uma acção moralmente correcta, na medida em que dele resultam as melhores consequências, favoráveis a um bem maior. A bondade reside no recurso a uma amnésia moral para que o conflito não ameace a paz. Pode-se concluir que o dever de esquecimento é efectivamente necessário do ponto de vista moral.

 


*Doutor em Estudos de Literatura e Mestre em Filosofia Geral pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é escritor, ensaísta e crítico literário, membro da União dos Escritores Angolanos. Foi membro do Comité Científico Internacional da UNESCO para a Redação do IX volume da História Geral de África. Presentemente é professor Associado da Faculdade de Humanidades da Universidade Agostinho Neto. Tem participado em equipas de investigação de outras instituições, tais como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre os seus mais de dez títulos publicados, destacam-se os seus dois últimos livros: Alumbu. O Cânone Endógeno no Campo Literário Angolano. Para uma Hermenêutica Cultural, Luanda, Mayamba Editora, 2019; Filosofemas Africanos. Ensaio sobre a Efectividade do Direito à Filosofia (Ensaio), 1ª edição, Ebook, Sergipe, Ancestre Editora, 2021.[Produção científica do investigador]



Publicado originalmente em 23/07/2023 no Jornal de Angola: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/moralidade-e-estudos-da-memoria/

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *