Celebrar os que não desistem de Moçambique
texto de Severino Ngoenha
O NASCIMENTO: UM PARTO ARRANCADO À HISTÓRIA
Natal é nascimento.
E o nosso foi arrancado, não concedido.
Moçambique não nasceu de parto sereno,
nasceu de cesariana histórica,
rasgado pela violência colonial,
expulso do ventre da dominação
com sangue, fome e exaustão.
Nascemos sem pão
e sem quem o soubesse produzir.
Sem escolas
e sem mestres suficientes para ensinar.
Sem hospitais,
sem médicos,
sem engenheiros para ligar caminhos.
Nascemos pobres, analfabetos, endividados,
num mundo que não esperava por nós
e numa região que não tolerava
uma criança livre.
Mal nascemos, já éramos alvo.
Rodésia, apartheid, sabotagens, invasões.
O recém-nascido teve de se esconder,
armar-se, vigiar a noite.
Esse foi o nosso primeiro Natal:
não de celebração,
mas de sobrevivência.
A RESISTÊNCIA: O TEMPO DOS VALORES COMUNS
E, no entanto, resistimos.
Resistimos porque acreditávamos.
Porque tínhamos um credo comum.
Porque a pátria não era um slogan,
mas uma promessa partilhada.
Resistimos porque pensávamos como povo,
porque a pátria era vínculo,
não propriedade.
Resistimos porque a moçambicanidade era ética encarnada:
vida antes do cálculo,
partilha antes do privilégio.
Foi essa moçambicanidade – ética antes de ser política –
que nos manteve de pé
quando tudo parecia conspirar contra nós.
DERROTA: A APOSTASIA DO “NÓS”
A queda não veio de fora.
Veio de dentro.
Veio com a deserção ética.
Com a renúncia axiológica.
Com a apostasia do “nós”, a favor do “eu” soberano.
Veio quando elites predadoras
transformaram responsabilidade política
em oportunidade de acumulação.
Quando estar perto do poder
passou a ser licença para enriquecer.
Assinaram contratos para si,
não para o país.
Fizeram acordos com interesses estrangeiros
sem povo à mesa.
Criaram fortunas familiares
à custa da miséria coletiva.
Minas que matam crianças.
Rios destruídos.
Madeira roubada.
Dívidas assinadas em segredo
que condenam gerações.
Uma desigualdade obscena
num dos países mais desiguais do mundo.
Assim, não matámos apenas o corpo
já lacerado por cinquenta anos de conflito.
Matámos a alma do país.
E quando a alma morre,
nenhuma luz salva.
Nenhuma festa redime.
MENSAGEM PARA TODOS OS QUE CAMINHAM COM DIGNIDADE
A todos os que ainda caminham,
a todos os que respiram fundo antes de desistir,
a todos os que seguram o país com braços cansados
e não esperam nada de nós –
eu desejo um Natal que os encontre.
Um Natal que os abrace,
mesmo quando nós não soubemos abraçá-los;
um Natal que os proteja,
mesmo quando nós não conseguimos proteger nada;
um Natal que lhes devolva a fé na vida,
essa mesma vida que tantas vezes profanamos
com a nossa indiferença educada.
Que este Natal seja, para eles,
um nascimento verdadeiro.
E que para nós –
os que pensamos, escrevemos, decidimos –
seja um julgamento.
Para que, do fundo da consciência,
nasça finalmente o país que ainda não chegámos a ser.
