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Símbolos de Natal

ensaio de Severino Ngoenha, Giveraz Amaral, Augusto Hunguana, Samuel Ngale

Copia de DESPREOCUPADOS RUMO A GUILHOTINA 1

Os principais símbolos de Natal são as canções, o Pai Natal e o presépio. O repertório de Natal está repleto de canções famosas, umas clássicas e outras mais populares.  Existem canções belas e famosas escritas em muitas línguas diferentes: Jingle bells, We wish you a merry Christmas, Silentnight, Feliz Navidad, Noite feliz, Heilige Nacht. De entre elas, a italiana Tu scendi dalle stelle (“Tu desces das estrelas”), composta na época barroca (1732) por Alphonsus Liguori, é certamente a mais célebre.

Depois de o compositor Ottorino Respighi ter adaptado a linha vocal no seu poema sinfónico Trittico Botticelliano, obra inspirada nas pinturas de Botticelli (adoração dos Reis Magos), a canção popularizou-se graças aos concertos que misturam géneros – para horror de musicólogos puristas –, por obra do trio dos famosos tenores Pavarotti, Carreras e Plácido Domingo, e depois por AndreaBocelli, no que passou a chamar-se, com certo desdém, “Pop operático”.

Além dos aspectos líricos e musicológicos, o interesse dos versos de Alphonsus Liguori reside, inprimis, no facto de fazerem uma hermenêutica, exegeticamente eloquente, do mistério da encarnação; secundus, está na peculiaridade de antagonismos que nos permite estabelecer com o momento histórico que vivemos.

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O veterotestamentário coloca Deus no céu, donde é suposto descer (para os judeus) e já desceu (para os cristãos) no Natal, a fim de libertar o Homem do drama da mácula na qual padece – desde o pecado edénico – e trazê-lo, finalmente, à justiça e à paz. É o sentido do afresco da Capela Sistina, magistralmente pintado por Michelangelo, no qual a mão de Deus vai ao encontro da mão do Homem, ou, ainda mais, do canónico “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados (…)”.

A tradição cristã coloca o lugar da encarnação, a Terra Santa ou lugar do nascimento de Jesus de Nazaré, em Bethlehem (Belém, terra de pão). Ele teria nascido sem-terra, sem-tecto, na periferia dos poderes político, económico e até religioso. Dessa terra de pão, hoje sem pão, estrangulada por muros de segurança ou ocupação, como em muitas bethlehemes do mundo (Sudão, Congo, Cabo Delgado), a poluição impede de ver as estrelas e o que desponta no céu e nas alturas são ruídos de aviões, bombas, mísseis: a morte!

Nas nossas bethlehemes do Sul não cai neve; do céu caem chuvas ácidas, poluição, fruto da queima de combustível fóssil que os petrodoleiros se recusam a abandonar. Donde era suposto caírem bênçãos, assistimos a chuvas de bombas protagonizadas por aviões supersónicos, com o objectivo de destruir o que de melhor possa ter sido criado: o Homem.

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Poderão as crianças de Cabo Delgado, Gaza ou as de Hiroshima olhar para o céu e ver estrelas-cadentes de salvação? As bombas matam, os drones tiram a esperança, tiram a vida, fazem exactamente o contrário do que o Natal se supõe fazer. É isto que vivem as crianças na Ucrânia, na Palestina – onde pretensamente Jesus teria nascido –, mas é também o que vivem muitas crianças hoje (assim como no passado) na Líbia e no Afeganistão, e de formas diferentes é o que vivem as crianças esquecidas de Cabo Delgado, do Congo, do Sudão e de muitos outros sudãos do mundo.

Tal como muitos meninos de hoje têm que fugir de bombas (fome, pobreza, catástrofes naturais, opressão), dos poderosos e seus aliados, o menino Deus – no seu percurso histórico – teve que se tornar refugiado político e fugir para – bis repetita – o (mesmo) Egipto para escapar da perseguição do rei Herodes, vassalo e cúmplice do Império Romano, na opressão e repressão do povo que ainda hoje clama pela emancipação das amarras da grande indústria bélica e dos interesses dos assassinos económicos.

Mutatis mutandis, o famoso Pai Natal (São Nicolau/ Santa Claus) é encarnação do antiNatal, é, antes de Adam Smith, Hayek ou Friedman, o arauto da idolatria do mercado. Essa personagem que vem das terras frígidas – e cheias de neve – do Norte, se fosse à Palestina ou ao Sudão, não é certo que encontrasse crianças vivas a quem distribuir a sua esmola ou caridade. As crianças sobreviventes, se existissem, esconder-se-iam ou fugiriam dele, porque, apesar da tenra idade, elas já sabem que esses vientes distribuem chocolates verdadeiros às crianças do seu hemisfério, mas o que nos dão a nós podem ser granadas, minas pessoais e outros objectos e produtos de morte, embrulhados em invólucros de chocolate adulterado.

As doações deste novo Pai Natal são oblações para a manutenção de sistemas económicos corruptos, cartas de legitimação de fraudes e corruptelas eleitorais, presentes troianos que visam convencer-nos de que somos inimigos uns dos outros e de que não devemos cooperar (governo e sociedade civil), mas fazer de conta que jogamos bem o jogo democrático da hipocrisia da procura do bem-estar social.

Os primeiros a reconhecerem o divino no humano (Lucas 2, 1-20), a testemunhar a encarnação do divino no humano (Mateus 2, 1-12), foram os magos que visitaram Jesus, logo após o nascimento na periferia de Belém. Esses magos – Belchior, Gaspar e Baltazar – vieram do Oriente, de onde o dia nasce e a vida recomeça.  Com a expansão geográfica do mundo, a partir do século XV a iconografia pretizou (escureceu) Baltazar para garantir que o novo chegado (África) não escapasse ao controlo imperial-religioso do mundo. Os magos são pessoas sábias – sabem ler os astros –, com intenções contrárias às do rei Herodes, que ficou alarmado e com ele toda a cidade de Jerusalém. Em Mt 2, 1-12 temos o rei Herodes contra Jesus, Jerusalém contra Belém, ricos contra pobres, (esconjuros dos Thierry Bretons para que a) Europa (se una) contra África.

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No presépio, esta grande criação de Francisco de Assis (1223) que atravessou tempos e lugares e agora invade – comercialmente – todas as casas do mundo, lojas, ruas e até a Praça São Pedro, aparecem homens negros, vindos do Oriente, onde nasce o sol e a vida, mas eles são sempre os pobres que trazem oferendas, riquezas e bem-estar para os outros. Eles trouxeram incenso e mira, mas sobretudo trouxeram ouro. Hoje o ouro é preto (da cor do contratado/monangabé); hoje o ouro são os recursos naturais e já não dependem da benevolência dos magos, mas da razão da força dos Herodes e dos romanos de hoje, que não hesitam em massacrar jesuses nos beléns empobrecidos do mundo, com o pretexto herodiano da caça pelo rei impostor, para o poder, ou do Deus ídolo para os religiosos.

Jesus de Nazaré nasce nas brechas de uma sociedade escravizada pelo imperialismo dos romanos e discriminada pelo poder religioso do sinédrio, comandado por uma elite económica – os saduceus – que usava a religião para marginalizar os empobrecidos e os adoecidos, impondo a cobarde lei da pureza e da impureza, que, volvidos dois milénios, continua a dividir as pessoas em puras e impuras. Os ricos continuam, urbi et orbi, a ser considerados puros e, por isso, abençoados (eugenismo e sociobiologia), enquanto os empobrecidos, mais do que nunca, são tidos como impuros e malditos.

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O espírito do Natal aparenta solidariedade e bondade, mas esconde o seu verdadeiro rosto: muitas vezes hipocrisia, cinismo e ostentação. Fala-se da Estrela de Belém, mas o que brilha são as luzes dos centros comerciais, das mesas repletas que esbanjam, dos fogos que anunciam uma felicidade duvidosa e de conveniência.

Como canta hoje o franciscano Zezinho: “Entre nós está e não o conhecemos, entre nós está e nós o desprezamos (…)”. Muitos (des)crentes e bem-pensantes (fabricantes e vendedores de armas, planificadores de exterminações, mafiosos, adulteradores da vontade popular, eugenistas, supremacistas, sionistas, racistas, neocolonialistas, assassinos económicos, ladrões dos povos, lesapátrias, e outros algozes) precipitam-se para as missas do galo antes de entrarem nos grandes banquetes (platónicos), onde se encontram fingindo reconciliação uns com os outros, mas não estão reconciliados com a vida. Afinal, antes de chegarem às igrejas, eles passam por muitos meninos de rua que morrem de fome, que não têm o mínimo de pão; eles encontram esfarrapados e, como maus samaritanos, procuram demarcar-se e ignorar os apelos de solidariedade e comunhão que lhes são dirigidos.

O que os evangelhos dizem é que Deus se encarna nessas pessoas. Por conseguinte, não será Natal, nunca será Natal, nunca será encarnação de Jesus, se a primeira atenção que portamos não for sobre os empobrecidos, se não for sobre os que mais necessitam, os mais miseráveis. É neles que se realiza a verdadeira encarnação, é neles que Jesus se faz homem, é a causa deles que Deus faz sua (James Cone).

As estrelas indicam sempre grutas e manjedouras – longe dos palácios e das catedrais, dos Herodes e dos romanos –, porque, se tivesse a desgraça de nascer num hospital na Palestina, não teria hipóteses de sobreviver à opressão dos Justos…

ensaio de Severino Ngoenha, Giveraz Amaral, Augusto Hunguana e Samuel Ngale

Marcos Carvalho Lopes

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